Reportagem sobre O Massacre do Alto Alegre, do jornalista Antonio Carlos Gomes Lima

"O Estado do Maranhão", 13 de Março de 2001 - terça-feira

São Luís-Ma, 13 de Março de 2000 - terça-feira

1901-2001

O MASSACRE DE
ALTO ALEGRE

Há exatamente cem anos, uma rebelião de índios guajajara, no município de Barra do Corda, resultou no maior massacre de índios contra brancos da história do Brasil. Além dos religiosos italianos - quatro padres e sete freiras capuchinhas - que, cinco anos antes, haviam fundado a Colônia de São José da Providência do Alto Alegre, foram também mortos pelos índios as adolescentes de Barra do Corda e Grajaú que participavam do internato de meninas índias - cerca de 40 -, os lavradores que moravam no povoado e os agricultores das vizinhanças, também surpreendidos pelos ataques. Os guajajara mataram aproximadamente 200 pessoas. Na opinião de estudiosos, a rebelião foi uma reação dos guajajara contra o equivocado processo de evangelização e civilização dos missionários capuchinhos, que exigia o afastamento das crianças das aldeias. "Era uma violência", diz o antropólogo Mércio Pereira Gomes, que está publicando o livro Tenetehara: o índio na História, estudo sobre os guajajaras desde o seu primeiro contato com o colonizador, no século XVI. Na época, o massacre repercutiu em todo o Brasil e foi considerado pelo Papa Leão XIII como “as primícias do século XX”. Maior tribo do Maranhão, com mais de 11 mil índios, os guajajara são ainda hoje, em consequência do episódio, tratados com desconfiança e menosprezo pelas populações dos dois municípios. Os capuchinhos, que no final dos anos 50 tentaram retomar o trabalho missionário em Alto Alegre, desistiram duas décadas depois. Pressionados pelos índios, tiveram que abandonar definitivamente o povoado, em torno do qual foi formada nova aldeia indígena. Para evitar o acirramento dos ânimos, os religiosos, que hoje mantêm um relacionamento cordial com os índios a partir de suas paróquias de Barra do Corda e Grajaú, evitam falar sobre o massacre de 1901. A lembrança daqueles fatos vai limitar-se à celebração de uma missa, hoje, na igreja matriz de Barra do Corda, à qual deverão comparecer lideranças guajajara. A convite de O ESTADO, o jornalista Antonio Carlos Lima, que durante alguns anos conviveu em Barra do Corda com frades capuchinhos e índios guajajara, reconstituiu o episódio e a época em que ocorreu - a virada do século.


PÂNICO E MORTE NO SERTÃO MARANHENSE

Cinco horas da manhã de 13 de março de 1901. Padres, freiras e as dezenas de meninas índias e brancas do internato rezavam, quando a capela foi invadida por uma barulhenta multidão de índios enfurecidos, sob o comando do cacique guajajara Cauiré Imana, o João Caboré.
Aos gritos, como se estivessem em guerra, eles perseguem e matam, ali mesmo, com tiros de espingardas e golpes de facas e tacapes, primeiro os padres.

O cenário do massacre em 1901: com a saída dos religiosos, a capela demolida pelos índios

Em pânico, as freiras fogem com as crianças e se escondem no convento. Os outros imploram clemência. Mas, em pouco tempo, quase todos estão mortos, estendidos sobre poças de sangue que se espalham no altar, na nave central, na sacristia: frei Rinaldo de Paolo, o superior dos missionários, frei Zacarias, frei Vítor, irmã Inês, de Milão, irmã Leonor, de Gênova... Os índios correm para o convento, em perseguição aos fugitivos. Outros grupos invadem as casas das 43 famílias de colonos que ali vivem a convite dos padres. Dois homens conseguem escapar à perseguição. Mas a chacina estava apenas começando.

Os guajajara - são cerca de 400 - tomam posse da sede da Missão de São José da Providência de Alto Alegre, então uma próspera vila fundada cinco anos antes pelos padres capuchinhos sobre uma colina que se destaca no meio da mata dos sertões da Chapada, e ali, mantendo alguns prisioneiros que também seriam mortos depois, instalam o seu quartel-general. Para evitar que a notícia se alastre, bloqueiam as estradas de acesso a Barra do Corda e Grajaú e a comunicação através do Rio Mearim. E partem para o ataque às fazendas e sítios da redondeza, matando os seus moradores e os viajantes desavisados da estrada e do rio. Durante dois meses, eles comandam dali uma série de ataques, enquanto enterram os mortos numa vala comum,Quarenta e oito horas depois do primeiro assalto, dois índios, Manezu e José Viana Guajajara, que não concordam com a revolta, chegam a Barra do Corda com a notícia. "Mataram todo mundo", repetem na cidade. 

Imagens das vítimas na fachada da matriz de Barra do Corda: alimentando a rivalidade

Mas ninguém acredita nela. Somente no dia 16 de março, três dias depois, com a chegada dos dois sobreviventes, a população se dá conta da tragédia. O que não se sabe é que a mortandade ainda iria continuar por muitos dias. Começara, no sertão maranhense, o que, na opinião de historiadores, foi o maior massacre de índios contra brancos da história do Brasil. Duzentos não-índios estavam mortos.

Um canhão na ponte - "Horroroso! Hecatombe! Situação aflictíssima! Sob a dolorosa impressão destas palavras, acordou esta cidade de sua habitual serenidade". O Norte, jornal fundado três anos antes por um grupo de intelecutais de Barra do Corda para defender a implantação da República, publicava, em sua edição do dia 24 de março, a primeira notícia sobre os acontecimentos na vila. A partir de então, sempre com informes atualizados, segundo as possibilidades da época, o semanário transforma-se na principal e mais citada fonte de informações sobre o conflito que se instalou no início do século passado, no interior do Maranhão.
Naquele mesmo dia 16, quando a notícia chegou por fontes seguras, comerciantes, fazendeiros e autoridades formam uma comissão para analisar a gravidade do que estava ocorrendo e para providenciar os meios de defesa da cidade contra um possível ataque dos índios.
O intendente Temístocles Bogéa manda instalar um velho canhão sobre as pontes dos rios Corda e Mearim, que circundam a cidade, e, juntamente com o jornalista Frederico Figueira, diretor e redator de O Norte, comunica o ocorrido ao governador do Estado, João Gualberto Torreão da Costa. Igual mobilização ocorre simultaneamente em Grajaú, onde muitas famílias têm filhas no internato dos capuchinhos e são avisadas por viajantes que escaparam das emboscadas dos índios na estrada.

Homens , às armas - As populações da região central do Maranhão mobilizam-se em função do episódio. Uma comissão de 70 voluntários, sob o comando do tenente Tomé Vieira Passos, parte em direção à região do conflito, mas, atacada na estrada por uma centena de índios, recua, com quatro mortos e 14 feridos. De Grajaú saíra outra expedição, de 25 homens, chefiada pelo capitão Raimundo Angelo Goiabeira. Também são rechaçados.
Somente a 3 de maio, quase dois meses depois, com a chegada de tropas enviadas de São Luís pelo governador Torreão da Costa, que se juntaram aos combatentes locais e a um grupo de quarenta índios canela, adversários dos guajajara, Alto Alegre foi dominada pela expedição militar. Mas os líderes da rebelião, Caboré, Manoel Paiva, Serafim, Miguel e Trajano, já estavam en-trincheirados em aldeias próximas.
Calcula-se que pelo menos 100 índios foram mortos nos combates. E mais não foram, certamente, por causa das advertências do governador, que, para irritação das autoridades locais, pediu que não se praticasse a vingança, e determinou que os frades devolvessem aos índios as crianças ainda mantidas no internato de Barra do Corda. "Reputo conveniente evitarem-se mais mortes, devendo intervenção armada somente ter lugar caso necessidade defesa", alertava o governador, em telegrama ao intendente.

Troféus de guerra - Caboré, "o cacique rebelde", como o cognominou o indigenista Olímpio Cruz, que durante mais de trinta anos viveu entre os guajajara como inspetor do extinto Serviço de Proteção aos Indios (SPI), só seria preso no final de maio. Juntamente com os outros líderes da rebelião, foi conduzido para Barra do Corda, onde ficou preso durante dois anos.
Caboré, um índio que diziam ser valente, tinha na época aproximadamente 40 anos. Segundo Olímpio Cruz, era caolho e usava um gorro de couro cabeludo de guariba, o que o distinguia dos demais de sua tribo. Nascido na aldeia Colônia, já se envolvera em discussões com os padres, por não aceitar as suas exigências de natureza religiosa e cultural. E andara fazendo ameaças. Dois meses antes de comandar a operação de guerra, fora a São Luís, onde teria recebido armas de autoridades. Na volta, comunicou aos guajajara da região de Pindaré a intenção de matar os padres, e os convidou para a luta. Os caciques daquelas aldeias estavam efetivamente ao seu lado na tomada de Alto Alegre. Alguns o acompanhavam quando chegou preso a Barra do Corda.
Ao entrar na cidade conduzindo os líderes da rebelião como troféus de guerra, o capitão Goiabeira, com sua tropa, foi recebido com banda de música, salvas de canhão e os gritos entusiasmados da população. Instaurou-se inquérito policial para responsabilizar os índios pelo ataque a Alto Alegre e aos fazendeiros. Caboré não resistiria. "Já condenado, depois de mais de dois anos o chefe guajajara, com o corpo todo inchado e as faces arroxeadas pelas sevícias, não resistiu, e morreu", relata Olímpio Cruz, que, mais do que qualquer outro pesquisador, recolheu testemunhos de velhos protagonistas da cena, há mais de quarenta anos.
Em sua edição de 25 de novembro de 1905, quatro anos depois da invasão armada a Alto Alegre, O Norte informava que "os dezenove índios que restavam foram absolvidos pelo Júri desta comarca, terminando assim os últimos episódios desse drama sanguinolento".
Muito antes da absolvição, no entanto, os índios que fugiram da perseguição das milícias e foram acolhidos em aldeias distantes, próximas do Pará, já estavam de volta à região. Os capuchinhos só voltariam a Alto Alegre sessenta anos depois.

Feridas abertas - Um século depois, as chagas do conflito ainda não estão de todo cicatrizadas. Os guajajara são ainda vistos com desconfiança e até desprezo pela maioria das famílias de Barra do Corda e Grajaú. Pequenos conflitos e escaramuças têm marcado, nos últimos anos, o difícil relacionamento, agravado nos anos 70 e 80 pela disputa pelos vastos territórios situados entre os rios Mearim e Grajaú - luta que eles, em grande parte, venceram, com a retirada de todos os moradores de Alto Alegre e São Pedro dos Cacetes, povoados que se localizavam na área reivindicada.
A lembrança do evento é reforçada pela Igreja, que elevou os seus mortos à condição de mártires do Cristianismo. Desde os anos 50, a igreja matriz de Barra do Corda exibe, na sua fachada em mármore de Carrara, as efígies dos padres, freiras e irmãos leigos do convento de Alto Alegre. Sob um altar, no interior da igreja, estão os restos mortais daqueles que "vieram de longe/ com fé e alegria/ trazendo no peito/ amor e valentia", segundo o hino oficial do centenário de sua chegada ao Maranhão. Ninguém parece empenhado em esquecer o episódio.

A “Infeliz Perpetinha”

- Dos dramas pessoais, o da adolescente Maria Perpétua dos Reis Moreira, a Perpetinha, é sem dúvida o que está mais presente na memória e no imaginário das populações de Barra do Corda e Grajáu. Ela e duas outras meninas internas do convento das freiras em Alto Alegre, filhas de comerciantes de Barra do Corda e Grajaú - Úrsula e Isabel - foram poupadas da morte e conduzidas pelos guajajara em fuga.
Os participantes da expedição do capitão Goiabeira conseguiram, durante os combates com os índios, resgatar Úrsula e Isabel, mas Jauarauhu, um dos comandantes da rebelião, levou Perpetinha em sua companhia selva a dentro. O Norte registra a comoção provocada em Barra do Corda pela notícia de que as moças estavam em poder dos índios - e , o pior, na condição de concubinas.
Jauarauhu levou Perpetinha para aldeias
na região de Monção, embrenhando-se nas matas da Serra do Tiracambu, à margem do igarapé Jararaca. Tiveram filhos. Os antigos contam em Barra do Corda que, anos depois,
um seringueiro reconheceu-a naquela região e quis trazê-la para a companhia dos pais. Ela não quis voltar. Muita dizem que, após aqueles acontecimentos, encontravam, entalhadas em árvores de casca grossa, na floresta, a seguinte inscrição; "Por aqui passou a infeliz Perpetinha".

DE COSTAS PARA O INTERIOR
Frederico Figueira e Dunshee de Abranches fundaram O Norte, numa época em que o poeta Maranhão Sobrinho (na foto) ainda vivia em Barra do Corda 

Em São Luís, na Igreja do Carmo, no dia 23 de março de 1901, portanto dez dias depois da morte dos missionários de Alto Alegre, os capuchinhos celebraram, em cerimônia cujo tom fúnebre era acentuado pela música regida pelo maestro Antonio Rayol, as "exéquias solenes" das vítimas. Comovida, praticamente toda a sociedade são-luisense compareceu: as autoridades, a elite intelectual, os estudantes e operários, as representações consulares, os italianos. Em Fortaleza, o bispo D. Antonio Albano Xisto também celebrou missa. Houve manifestações em todo o país. Mas o isolamento da região, sem estradas, sem telégrafo ou outros meios de comunicação, acabaria contribuindo para a diminuição gradativa do impacto provocado por aquele acontecimento.
O Diário do Maranhão e a Pacotilha, os dois mais importantes jornais da capital, limitavam-se a reproduzir as notícias publicadas pelo O Norte, de Barra do Corda, que chegavam a São Luís com mais de uma semana de atraso. Enquanto noticiavam, estimulavam polêmicas. Escrevendo na Pacotilha, o advogado e jornalista Carlos Augusto de Araújo Costa pregava que se alguma lição deixara o episódio era a de que aos religiosos não se deveria mais permitir "tomar os filhos dos índios". O padre Damasceno Ferreira, professor do Liceu Maranhense, contestou. Outros articulistas entraram na briga, inclusive o redator de O Norte, Frederico Figueira.

Há vida no sertão - Historicamente, São Luís desenvolveu-se com os olhos voltados para a Europa, cercada pelo mar, de costas para o interior do Estado. No início do século XX, a fase de esplendor econômico acabara, o Maranhão entrara em decadência com a desarticulação da lavoura, provocada pelo fim da escravatura. Os antigos fazendeiros tentam em São Luís um último lance, iludidos com as possibilidades da indústria têxtil. Para manter a aparência de província rica, a elite econômica ainda consome produtos franceses e ingleses (de má qualidade). Ao abalo econômico, soma-se o empobrecimento cultural. As gerações de jornalistas, poetas, historiadores, críticos e eruditos que se sucederam depois da Independência, em 1922, desaparecera. João Francisco Lisboa, Odorico Mendes, Trajano Galvão, Gonçalves Dias, Celso Magalhães, Sotero dos Reis, que faziam de São Luís a Atenas Brasileira, estavam mortos. Na virada do século, nem mesmo o esforço de um intelectual requintado como Antonio Lobo, fundador da Academia Maranhense, em retomar o passado de glórias com a eleição do que considerava "os novos atenienses", nada conseguia esconder a pobreza em que se debatia o Maranhão.
O sertão, na verdade toda a região centro-sul do Estado, desenvolve-se a seu modo, lentamente. Foi povoado por migrantes nordestinos, principalmente da Bahia, que no final do século XVII demandavam terras para a pecuária, abrindo os chamados caminhos do gado, aos quais mais tarde se juntariam pessoas perseguidos durante as lutas da Independência. Tinha vida independente do litoral, longe da sede da província. Ali, em vilas como a Chapada (depois Grajaú), fundada em 1835, Barra do Corda, Balsas, Carolina e Pastos Bons (esta, povoada desde o final do século XVII, por vaqueiros em busca de bons pastos), cultivavam-se os valores da educação e da cultura. No livro que escreveu em 1922 para marcar a passagem do centenário da Independência - O Sertão - , a professora Carlota Carvalho descreve, sensibilizada, o que diz ter visto naquelas paragens nos primeiros anos do século. Em lugares remotos, onde só é possível chegar em lombos de animais ou embarcações que singram rios durante semanas e até meses, observa escolas, jornais, clubes de leitura. Em Grajaú, Carlota Carvalho diz ter conhecido, entre outras figuras, o lavrador Egídio Pacheco. "Ele ama a instrução e gosta de leitura. Através das florestas, imerge-se no sublime dos ideais, esquecido do precário da sua existência sob um teto de palhas, mal vestido, descalço e mordido por mutucas e muriçocas, tendo um livro na mão".
Uma idéia, um jornal - Em Barra do Corda, em 1888, um jovem promotor, Dunshee de Abranches, que seria depois reconhecido como um grande escritor e memorialista, funda, com o juiz Isaac Martins e o advogado Frederico Figueira, o Partido Republicano. E, para defender suas idéias, um jornal: O Norte, que haveria de documentar os acontecimentos dramáticos de Alto Alegre e parte significativa da vida do sertão maranhense do início do século passado.
Quatro anos antes do massacre, em 1897, um rapaz, quase adolescente ainda, dirige um jornal em Barra do Corda, O Porvir, onde publica seus primeiros poemas. É o poeta José Américo Augusto Cavalcante dos Albuquerques Maranhão Sobrinho, que seria anos depois reconhecido como um dos maiores parnasianos e simbolistas do Brasil. Em sua edição de 21 de fevereiro daquele ano, O Porvir publica um texto em que, referindo-se ao internato que os frades capuchinhos planejam implantar em Alto Alegre, diz ter esperanças de que "com uns dez anos, os dois institutos darão casais indígenas bem educados". E finaliza, com uma dúvida: "Então, será que o Alto Alegre, rodeado hoje de aldeias e de matas virgens, tornar-se-á uma boa povoação de indígenas civilizados?" Não se tornaria.
Maranhão Sobrinho deixou Barra do Corda antes do massacre. Na época, estava em São Luís e, provavelmente, compareceu às "exéquias solenes" daquela manhã de 23 de março de 1901, na velha Igreja do Carmo. Mas, como a maioria dos "novos atenienses" , que sonhavam restaurar o perdido esplendor de São Luís, nada escreveu sobre os acontecimentos de Alto Alegre, onde pelo menos um irmão seu, Mundinho Maranhão, lutara contra os índios. São Luís continuava de costas para o sertão.(ACL)

A matança anunciada

Feridos nos seus valores culturais, privados da companhia dos filhos e incomodados com a presença daqueles estrangeiros em suas terras, os guajajara poderiam ter dado um basta à situação simplesmente expulsando, até mesmo com violência, os integrantes da missão dos padres capuchinhos de Alto Alegre. Mansos por formação franciscana, indefesos, convictos de que "apenas praticavam o bem" naqueles ermos, os religiosos italianos haveriam, em tese, de se render a um ultimato das lideranças indígenas. Seria a situação insustentável ao ponto de não caber outro recurso senão o ataque armado? E, o que é mais intrigante: por que a sentença de morte aos lavradores e pecuaristas e até aos moradores de Barra do Corda e Grajaú que se aventuraram a penetrar no território conflagrado?
Cem anos depois, e essas perguntas estão sem resposta. A documentação sobre o episódio registra o inconformismo do índio e até o temor dos religiosos quanto à possibilidade de uma reação violenta daqueles que pretendiam reduzir, isto é, "civilizar", segundo a sua visão, a partir do investimento nas crianças. De Alto Alegre, em abril de 1899, frei Celso de Uboldo informava a um irmão na Itália sobre a difícil relação com os índios: "Vivemos uma batalha verdadeiramente renhida, porque a situação é difícil, tanto do ponto de vista moral como físico. A nossa vida está sempre em perigo. Se não fosse a proteção de Deus, eu mais frei Salvador, desde o mês de agosto já estaríamos no número de mortos".
O relacionamento era sem dúvida conflituoso. Mas não fora sempre assim. Ao descrever a colônia, frei Celso de Uboldo diz que ela se situa "em lugar apropriado, no meio das florestas e cercado de várias tribos, as quais freqüentam a nossa casa e aproximam-se cada vez mais ao ponto que 17 famílias abandonaram a floresta para morar em nossas proximidades". O internato das meninas índias, porém, ainda não entrara em funcionamento.

Sarampo e castigo - Um fato gravíssimo ocorrera um ano antes do massacre. O líder Caboré fora punido pelos padres por estar convivendo maritalmente com duas mulheres. Preso, "amarrado pelos pés e pelas mãos", segundo relatos de guajajaras colhidos pelo antropólogo Mércio Pereira Gomes e pela socióloga Elizabeth Maria Bezerra Coelho, Cauiré Imana teria cultivado o desejo de vingança, afinal concretizado. Ponto de vista que é reforçado pelos próprios capuchinhos. O jornal A Voz de São Francisco, publicado em 1951, em Fortaleza chama a atenção para o fato de que "a hora da vingança chegou, e Caboré soube unir ao álcool palavras que incentivam o espírito", isso tudo depois de se embrenhar pelas matas, "indignado com o non licet de padre Rinaldo (o superior da missão de Alto Alegre)".
Em carta a parentes na Itália, uma das freiras de Alto Alegre informa que, um ano antes, uma epidemia de sarampo havia tomado conta do povoado, matando 28 crianças. "A nossa casa dentro de poucas horas encheu-se de caboclos, e todos para ver a própria filha. Para sossegá-los, já que receávamos uma revolta, tivemos que hospedar e manter por dois dias e duas noites as mães das meninas. A nossa residência transformou-se numa verdadeira aldeia: cantavam, bradavam, choravam, e nós correndo para junto de uma ou de outra, e acariciando-as para que não nos levassem as crianças... Somente após ingentes esforços e orações, as irmãs readquiriram a confiança dos selvagens. E reiniciam-se as viagens nas aldeias, e são tão mal recebidas, que pedem a suspensão temporária de tais visitas às aldeias, pois havia entre os índios quem chorasse e quem ameaçasse". Esta e outras cartas estão arquivadas pelos padres capuchinhos numa pasta intitulada "Clarões de bondade e heroísmo das sete religiosas martirizadas".
E havia os membros da Maçonaria, instituição que ajudou a derrubar o Império e a difundir as idéias positivistas, entre as quais se destacava a pregação contra a Igreja, inclusive a sua atuação junto aos povos indígenas. E havia os comerciantes de Barra do Corda e Grajáu, que se sentiam ameaçados pelo progresso da Vila de São José da Providência de Alto Alegre, que não só produzia para a subsistência de seus moradores, como já vendia os excedentes agrícolas na região.
"Juntos, esses fatos podem explicar a revolta contra os padres", diz o antropólogo Mércio Pereira Gomes. Mas, e a morte dos outros moradores de Alto Alegre? E o ataque aos fazendeiros e viajantes? O Norte relaciona os casos mais chocantes: famílias inteiras, como a do coronel Raimundo Ferreira de Mello, a uma légua da missão, foram trucidadas. "Eram cinco horas da manhã quando eles, já de emboscada, atiraram no vaqueiro. De súbito, atacaram a varanda, onde se encontravam Francisco Xavier de Menezes, casado, residente em Barra do Corda, e estava ali de passeio; Raimundo Gonçalves, Manoel Adriano, Manoel Lageado e o preto velho Manoel. No momento em que a porta caíra, a senhora de Manoel Lageado, de nome Severina, fez as mais vantajosas promessas à turba desenfreada: ouro, gados, bens, tudo quanto possuía foi recusado. A tiros e facadas pereceram as senhoras Severina, Maria de Freitas, Justina e menina Maria, de dez anos idade". Na mesma data, 24 de março, o jornal informa que "28 pessoas da família de André Carlos de Oliveira, que criavam um índio, foram mortas". Além dos moradores e missionários de Alto Alegre, 120 pessoas morreram.
Por maiores que fossem os rumores de um ataque à missão, era difícil, para os capuchinhos, acreditar que os guajajara iriam tão longe. (ACL)


A evangelização era parte de um projeto maior dos padres capuchinhios: civilizar os selvagens

"ELES SAÍRAM PARA SEMEAR"

Que o objetivo era muito mais ambicioso do que a simples difusão da fé cristã entre os indígenas, ficou evidenciado desde a chegada da primeira missão dos padres capuchinhos ao Maranhão, em 1612.
Na verdade, os quatro religiosos - Yves d´Evreux, Claude d´Abbeville, Ambroise d´Amiens e Arséne de Paris - que, a pedido da própria rainha regente, Maria de Médicis, integravam, em posição de honra, a expedição de Daniel de La Touche e François de Rasilly, na conquista do Maranhão - pretendiam "civilizar" os índios - o que supunha a substituição de uma cultura dita selvagem por um modo de vida próximo do europeu. E, nesse empreendimento fantástico, eles se empenharam obstinadamente, convencidos de que, nesta parte do Novo Mundo, estavam construindo as bases de uma nova civilização, integrante, agora, do Reino de França, Navarra e Maranhão. Para eles, o território habitado pelos tupinambás era "uma terra infiel que até então só tinha produzido cardos e espinhos da maldição", mas que iria, a partir dali, "produzir os doces frutos da graça".
Três séculos depois, quando desembarcaram em Barra do Corda, movidos pelo mesmo fervor salvacionista dos irmãos franceses que não lograram alcançar seus objetivos por obra do demônio, mancomunado com os portugueses, segundo acreditavam, os capuchinhos italianos projetaram estabelecer no Maranhão uma "comunidade de índios civilizados". Com a mesma visão redentora daqueles capuchinhos de Paris.
Nada os demovia desse propósito. Nem a vida difícil que os aguardaria nas selvas, em meio aos ímpios, entre onças e expostos a doenças, longe do conforto da Europa, nem o fracasso de missões anteriores, inclusive a de frei José Maria de Loro, como eles um capuchinho italiano, que, em 1874, se instalara entre os guajajara, na Colônia Dois Braços, sendo substituído, dez anos depois, por frei Antonino de Reschia. Ambos envolveram-se em conflitos com os índios. Velhos caciques, ouvidos há vinte anos pelo antropólogo Mércio Pereira Gomes, repetiam os relatos de seus pais e avós sobre o relativo progresso material da colônia e o empenho de frei José Maria em guardar ouro num pote enterrado na capela.
Não os demoviam nem mesmo as advertências daqueles primeiros capuchinhos, que legaram aos pósteros dois livros fundamentais para a história do Maranhão e do Brasil: História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, de Abbeville, e Viagem ao Norte do Brasil, de Evreux. Em ambos, é nítida a preocupação daqueles homens barbudos, que usam roupas de sarja escura, e dos próprios soldados de Ravardiére, de respeitar os costumes dos índios, tratados como amigos. Tão amigos, que seis deles foram levados à França e batizados, vestidos à francesa, numa cerimônia espetacular, no Louvre, que contou com a presença do rei Luís XIII, na época um menino de 12 anos. Não satisfeitos com as homenagens, os capuchinhos casaram os três índios que sobreviveram às doenças da Europa com francesas, que os acompanharam na volta, para aqui gerar muitos filhos com sangue normando e olhos azuis.
Os aldeamentos - Com a expulsão daqueles primeiros missionários franceses, chegam, na companhia dos portugueses - mais interessados em ocupar e explorar as riquezas naturais deste pedaço da América do que em mudar usos e costumes de bárbaros - os padres carmelitas. Em 1615, chegam os jesuítas. O padre Antonio Vieira chegaria em 1653.
Ao formar ou incentivar os aldeamentos, que se tornam autônomos, independentes da Colônia, os jesuítas estabelecem verdadeira muralha de proteção aos índios contra a escravidão, mas entram em conflito com o Estado Colonial e outras ordens religiosas. O padre Vieira, que viveu alguns anos nestas terras, e é tido como o fundador efetivo da Missão do Maranhão, percorria o Rio Tocantins, quando, por sua atuação em defesa dos índios, teve que sair escoltado de Cametá, no Pará, sendo depois conduzido para Portugal, perseguido pela Inquisição por suas idéias sebastianistas. Embora bem intencionado - assim como o dos mercedários, dos carmelitas -, o trabalho de Vieira com os índios já fracassara antes mesmo da perseguição da Santa Sé.
Estas e tantas outras experiências missionárias frustradas ao longo da história deveriam ter fornecido aos capuchinhos - que, naquela manhã de maio de 1895, são recepcionados com festas pela população de Barra do Corda - as lições para evitar os equívocos dos seus antecessores. Não foi o que aconteceu.

Catequese polêmica - Os primeiros capuchinhos italianos a chegar ao Brasil fundam, em 1780, aldeamentos na região do Campo de Goitacases. Na segunda metade do século XIX, eles chegam ao Maranhão, enquanto salesianos se instalam no Mato Grosso e os dominicanos, ao longo do Rio Araguaia. Os que se fixam em Pernambuco migram para no Maranhão, já com o propósito declarado de promover missões indígenas.
Com a proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja separam-se, o governo convida diversas ordens religiosas européias, agora sob novas condições, para o trabalho de evangelização. No dia 24 de abril de 1892, depois de estudarem durante seis meses, em Gênova, a língua, a história e a cultura brasileiras, desembarcam em Recife os seis primeiros missionários capuchinhos lombardos. Dois deles - frei Vito de Martinengo e frei Emiliano de Goglione - morrem alguns meses depois, vítimas da febre amarela.
A idéia de catequizar índios, defendida por frei Carlos de São Martino Olearo, considerado o fundador da missão dos capuchinhos lombardos na província, gera polêmica. O prefeito apostólico de Pernambuco, frei Gaetano de Messina, considera mais prudente limitar a atuação religiosa às comunidades cristãs. Mas frei Carlos, entusiasmado com os relatos sobre os guajajara feitos por frei José Maria de Loro e frei Antonino de Reschia (aqueles da Colônia Dois Braços), ignora as observações do superior e, em busca dos índios, chega a São Luís, em agosto de 1893.
Um ano depois, é criada a Missão do Maranhão. Com autorização do governo do Estado, instala-se, no velho Convento do Carmo, no centro da capital maranhense, onde ainda hoje funciona. Em maio de 1895, com salvas de fogos e banda de música, é inaugurado o convento de Barra do Corda e funda-se o internato para os filhos de índios. Os capuchinhos não sabem, mas estão construindo o próprio calvário.

Meninos e meninas - Segundo o historiador capuchinho Metódio da Nembro, em 1900 o internato de Barra do Corda abrigava 78 índios menores de 14 anos, que estavam sendo alfabetizados e aprendiam ofícios como carpintaria, alfaiataria, olaria e música, além, é claro, do catecismo.
Embora admirassem o trabalho dos religiosos, barracordenses incentivaram os índios a retirar os filhos do internato, alegando que eles poderiam ser recrutados para o serviço militar da ainda florescente República. O catecismo fora proibido nas escolas públicas e a Maçonaria ampliava a sua pregação anticlerical, inclusive em Barra do Corda. Para evitar dissabores, os padres decidem, então, criar outra missão, dentro das terras indígenas, longe dos olhares e vozes inquisidoras.
Num lugar aprazível, a pouco mais de 60 quilômetros de Barra do Corda e a igual distância de Grajaú, eles instalam a Missão de São José da Providência do Alto Alegre, em área de 4.300 hectares, adquirida de um lavrador cearense ali estabelecido. Os padres construíram um açude, um engenho de cana-de-açúcar, uma igreja, o convento e outro internato, desta vez exclusivo para meninas, também menores de 14 anos. Afinal, quando inteiramente "civilizados", aqueles meninos de Barra do Corda iriam casar-se com quem? Com índias bárbaras? Eis a lógica do internato: as indiazinhas eram preparadas, juntamente com uma dezena de meninas brancas, de famílias de Barra do Corda e Grajaú, para os futuros casamentos com índios também aculturados.
Quatro padres e sete freiras capuchinhas italianas participavam do trabalho educacional. Agora, mais do que nunca, não basta ensinar os índios a ter uma vida cristã; é preciso alterar os seus hábitos e costumes, como o dos homens terem várias mulheres ou de não seguirem uma rotina, com horários e tarefas pré-determinadas. "Para catequizar e civilizar índios, eles concluíram que teriam que agir no sentido de desestruturar suas sociedades e suas culturas", afirma Mércio Pereira Gomes. Além disso, o regime de internato, segundo outro antropólogo, Cláudio Zannoni, "significava tirar essas crianças do convívio com a comunidade, o que ia de encontro à cultura indígena".

Diálogo de culturas - São muitas as opiniões sobre os motivos da ofensiva dos guajajara. Metódio da Nembro passa ao largo da apreciação do erro da evangelização civilizadora, e apresenta quatro razões: "1) o ódio de perversos (os assim chamados cristãos e civilizados, mas que na realidade são descrentes, corruptos e exploradores de índios) que incitaram os selvagens, para se livrar dos missionários que punham um freio ao seu viver licencioso e fora dos limites colocados pela Justiça; 2) a propaganda protestante, que, havendo muitas vezes tentado, sempre em vão, a penetração entre os índios, via cheia de ódio e raiva o afirmar-se da missão católica; 3) a longa manus da Maçonaria e do positivismo, naquele tempo dominantes, que se expressaram por várias vezes no sentido de acabar com os frades, isto é, exterminar os frades, e por esse motivo, recorreram a honrarias, títulos, adulações, bajulações para o Caboré; 4) enfim, o ódio anticristão deste último, aguçado pela íntima crise de fé e transbordante de paganismo e, por isso, desembocando numa amplitude e ímpeto que superaram as previsões dos seus longínquos inspiradores e instigadores".
A maioria dos estudiosos não hesita em apontar como causa maior o choque cultural provocado pela retirada dos filhos do convívio dos pais, considerando que as crianças têm uma presença forte, imprescindível, no cotidiano das famílias guajajara. "Trata-se de um método catequético inadequado, e até mesmo brutal", denuncia o sociólogo Pedro Braga dos Santos, autor do ensaio Diálogo de culturas, conflito de civilização, editado pelo extinto Ipes.
No livro Eles saíram para semear, que o Convento do Carmo fez publicar em 1993, para assinalar o centenário da instalação da missão no Maranhão, o bispo de Grajaú, frei Franco Cuter, admite que houve por parte dos capuchinhos "inevitáveis erros e limitações". Outro capuchinho, frei Leonardo Trota, afirma que os seus irmãos de Alto Alegre "plantaram a igreja no seu sangue". E questiona: "Erraram no método? Pode ser. Mas amaram. Acreditaram no ideal até odiar as suas vidas".

Ressentimentos - Nem a revolta dos indígenas nem o reconhecimento dos erros fizeram os capuchinhos recuar no trabalho missionário com os guajajara. Nem a abrir mão do domínio sobre Alto Alegre. Em 1959, "para continuar o trabalho apostólico dos mártires" junto aos índios, o superior da Custódia Provincial do Maranhão autorizou a volta dos padres ao povoado. Em 1975, chegam novamente as irmãs capuchinhas de Madre Rubatto. Além de uma Casa de Noviciado e da igreja, eles mantêm um posto médico, dando assistência material e espiritual aos índios e a cerca de 300 famílias de lavradores que atraem do Ceará, Piauí e do interior do Maranhão. Ali permaneceram até 1983, quando, por ordem da Justiça e em atenção à reivindicação dos índios, deixam definitivamente Alto Alegre, cujas edificações são destruídas.
"Era impossível lutar contra as pressões da opinião pública, contra a força das armas do governo e contra a ganância dos índios de tornar-se donos de tudo o que havia em Alto Alegre, como prédios, benfeitorias e madeira de lei", diz frei Osvaldo Coronini. O Ministro Provincial dos Capuchinhos no Maranhão, Pará e Amapá, frei Dorival Ribeiro, 44 anos, maranhense, natural de Porto Franco, evita fazer uma avaliação daquele acontecimento centenário. "Não queremos acender a fogueira dos ressentimentos". O Arcebispo de São Luís, Dom Paulo Andrade Ponte, alega “o pouco conhecimento dos fatos históricos” para não ter que emitir também uma opinião.
Até o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no Maranhão, José Bolívar Burbano Paredes, é cauteloso. "Não adianta procurar culpados, erros nas pessoas e instituições", diz. Ele assinala que, segundo "a cosmovisão guajajara", sabe-se que a separação dos filhos "implicava uma desestruturação social". Mas garante que o que estava por trás da prática dos internatos era "o fervor missionário e evangelizador dos missionários".
Hoje, embora ainda atuem junto aos índios, inclusvie os guajajara, os 76 padres capuchinhos da Província do Maranhão parecem haver desistido do projeto de civilização concebido em 1612 por seus irmãos franceses e fervorosamente defendido por eles à custa de muitas vidas de indígenas, religiosos e colonos. Para assinalar a passagem do centenário do chamado Massacre do Alto Alegre, eles programaram apenas uma missa, a ser celebrada na manhã de hoje, na igreja matriz de Barra do Corda. A intenção, segundo frei Dorival, é apenas lembrar que "há cem anos, eles saíram para semear". Mas será inevitável a pergunta: a semente deu bons frutos? (ACL).

GUAJAJARA

ÍNDIOS EM CONFLITO

Mércio Gomes (E), Zanonni e Elizabeth Coelho: autores ampliam o dabate sobre os guajajara

Os tenetehara, como são conhecidos em sua língua os índios guajajara e tembé, povos de fala tupi do Maranhão, constituem um raro fenômeno de resistência étnica num país que destruiu ou aniquilou culturalmente a maioria dos seus povos indígenas. Desde o primeiro contato com o europeu, quando foram visitados pelos franceses em seu território original, no Rio Pindaré, eles resistem à ação das frentes de colonização, que para eles representaram a chegada de doenças desconhecidas e a tentativa de subjugação. Para analisar essa particularidade, à luz das ciências sociais, o antropólogo Mércio Pereira Gomes, 51 anos, professor da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto de Pesquisas Antropológicas do Rio de Janeiro, acaba de escrever um livro - O índio na História: a saga de um povo em busca de liberdade -, a ser editado ainda este ano pela Vozes.
Resultado de quase trinta anos de pesquisas, que incluíram dezoito meses em contato direto com a maior nação indígena do Maranhão, o trabalho de Mércio Gomes, autor de The Indians of Brasil, publicado no ano passado pela Universidade da Flórida, reconstitui parte da história do Maranhão e do Brasil e procura demonstrar que os tenetehara representam, pelo seu exemplo, "uma possibilidade concreta" de sobrevivência do lado primitivo dos povos. O livro tem como ponto de partida uma tese defendida pelo antropólogo em 1997, na Universidade da Flórida, e aprofunda o entendimento de que, "embora com formas culturais distintas, as pequenas etnias que sobreviveram à expansão do mundo ocidental se colocam no mesmo nível de inteligência e percepção do mundo que as grandes etnias, povos e civilizações, adaptando-se a ele sem serem incorporados".
A lógica de povos como os guajajara não pode, segundo Mércio Gomes, ser diferente daquela dos ditos civilizados, como acredita Claude Lèvi-Strauss, o grande antropólogo francês que nos anos 20 estudou os bororo, nambiquara e tupi-cavaíba. Muito menos, defende, "sua capacidade analítica não é a de uma criança de sete, oito anos, no estado pré-lógico, como supôs o pedagogo Jean Piaget, nem a sua percepção equivale à de um neurótico, como teorizou Freud". O propósito da obra, no plano ideológico, seria, de acordo com o autor, "contribuir para combater essas e outras idéias sobre os índios". A polêmica estará criada a partir de julho, quando o trabalho chegar às livrarias.
Sobre o conflito de Alto Alegre, que estudou com especial interesse, não hesita o estudioso em afirmar que "constituiu a última grande rebelião indígena contra o mundo civilizado que os envolvia e compungia à condição de servos, vassalos ou cidadãos de terceira classe, para serem dissolvidos na massa subserviente de pobres sem terras".

Olho por olho - Os guajajara constituem o tema de outro livro recém-concluído, Territórios em confronto, tese apresentada pela sociólogoa Elizabeth Maria Bezerra Coelho ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará - exigência parcial para obtenção do doutorado. O eixo da discussão proposta por Elizabeth Coelho é "a terra como elemento de etnonacionalidade", isto é, de definição de fronteiras étnicas e nacional, pois segundo ela, a disputa pela terra entre os guajajara e os "brasileiros" como um fenômeno que transcende os limites da clássica luta pela terra no Brasil, para assumir contornos de um confronto de nacionalidades".
Elizabeth Coelho, que já publicou meia dúzia de livros sobre índios do Maranhão - entre outros, Cultura e sobrevivência dos índios no Maranhão, Edufma-1987; A política indigenista no Maranhão provincial, Sioge, 1990 - argumenta que "os povos indígenas não podem ser pensados da mesma forma que os imigrantes que para aqui se deslocaram, na maioria das vezes, dispostos a se integrar ao novo Estado, ou, no mínimo, conscientes de que viveriam sob o domínio do Estado Nacional". Os povos indígenas, diferentemente, procedem - observa - de uma situação "anterior ao Estado brasileiro, ou seja, anterior à colonização".
O livro de Elizabeth Coelho analisa o processo de "desintrusão" das terras indígenas ocupadas pelos não-índios desde o final do século XIX. A primeira área retomada é justamente aquela que os frades capuchinhos compraram de um lavrador cearense em 1893 e onde fundaram a Colônia de São José da Providência do Alto Alegre. Após o massacre de 1901, os religiosos retornaram ao povoado no final dos anos 50, sendo praticamente expulsos trinta anos depois por pressão dos índios e da ala indigenista da Igreja. Outra área reconquistada foi a de São Pedro dos Cacetes, um povoado onde, há 60 anos,.viviam cerca de 300 famílias de lavradores. Para acabar com o clima de beligerância na região, a governadora Roseana Sarney determinou, em 1995, a construção de um novo povoado para os lavradores, à beira do Rio Mearim, no lugar Remanso, com infra-estrutura de energia, estradas e abastecimento d´água.
Retomadas as áreas ocupadas e demarcado seu teritório de 846.462 hectares, percebeu-se, segundo a socióloga, que o conflito pela terra não esgotava em si mesmo, "mas representava outros conflitos decorrentes do confronto entre o Estado, que se pretende nacional, e a pluralidade nacional inserta em seu território". Ou seja, a luta continua.
Enquanto os dois estudos citados não chegam às livrarias, os interessados sobre a história dos guajajara podem ler o livro Conflito e coesão: o dinamismo tenetehara, do historiador italiano Cláudio Zanoni, que desde 1979 trabalha com índios no interior do Maranhão.
Ex-coordenador no Estado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo ligada à igreja chamada progressista, Zanoni empreende interessante trabalho etnográfico, analisando usos e costumes dos guajajara, e aborda o conflito como um aspecto positivo de sua cultura, "uma vez que é acionado como regulador das relações sociais, através de mecanismos niveladores que impedem a existência de diferenciação de ´classe´ entre famílias extensas". Os tenetehara brigam não somente com os "civilizados", como demonstra Zanoni, mas entre eles mesmos. "Podemos afirmar que a força motora da cultura tenetehara se materializa através de fases de conflito e fases de coesão, nas quais esse povo manifesta toda a sua vitalidade e sua força frente à necessidade de sobreviver como cultura diferenciada".
Na apresentação do livro de Zanoni, Sílvia Maraia de Carvalho diz que o autor aprendeu que os tenetehara se guiam por uma "moral do reequilíbrio", até mesmo nas suas contendas políticas. Explica: "Partem para a briga, olho por olho, dente por dente, mas quando a luta se equilibra, se dão por satisfeitos, não querendo cegar o inimigo de todo, nem deixá-lo inteiramente desdentado”. (Antonio Carlos Lima)

OUTRAS LEITURAS
O Massacre de Alto Alegre - Pedro Braga dos Santos e outros autores. Ipes. São Luís. 1991.
Barra do Corda na História do Maranhão - Galeno Brandes - Sioge. São Luís, 1994.
O Sertão - Carlota Carvalho - (Reedição) Ética Editora. Imperatriz, 2000.
I Cappuccini nel Brasile - P. Medódio da Nembro - Centre Studi Cappuccini Lombardi - Milão, 1957. Disponível na biblioteca do Convento do Carmo, em São Luís.
Cauiré Imana - Olímpio Cruz - Thesaurus - Brasília, 1982 (esgotado)
Caminhos do gado - Maria do Socorro Coelho Cabral - Edições Secma - São Luís, 1992.
A esfinge do Grajaú - Dunshee de Abranches - (Reedição) Alumar Cultura/Academia Maranhense de Letras. São Luís, 1993.
Conflito e coesão - o dinamismo tenetehara - Cláudio Zannoni - Cimi. Brasília, 1999.
Eles saíram para semear - Editora Velar - São Luís, 1993. Convento do Carmo.
História da Missão dos padres capuchinhos na Ilha do Maranhão e terras circunvizinhas -Claude d´Abbeville. Editora Itatiaia. São Paulo, 1995.
Viagem ao Norte do Brasil - Yves d´Evreux. l872. (Seção de obras raras da Biblioteca Pública Benedito Leite).
História Eclesiástica do Maranhão -D. Felipe Conduru Pacheco - Departamento de Cultura do Estado do Maranhão. São Luís, 1968. (esgotado)
Para melhor compreensão do tema, é também útil consultar a coleção de jornais da Biblioteca Pública Benedito Leite, muito bem documentada sobre o período, e as publicações e documentos da biblioteca do Convento do Carmo, em São Luís. Os livros Territórios em confronto, de Elizabeth Bezerra Coelho, e Tenetehara: o índio na História, de Mércio Pereira Gomes, que tratam dos guajajara e analisam o conflito, serão publicados este ano: o primeiro, pela Editora Vozes; o segundo, pela Universidade Federal do Ceará.