Dissertação

"MASSACRE DO ALTO ALEGRE:
BENÇÃO E DOR,
FÉ E SANGUE NO SERTÃO MARANHENSE"

 

*por Miramny Santana Guedelha

1. INTRODUÇÃO

Um tema polêmico, ainda controverso no meio da história e, também, obscuro para muitos, aquilo que passou para a história como o "Massacre de Alto Alegre", ainda rende prejuízos aos Guajajaras e desperta ódios e paixões entre a população das cidades de Barra do Corda e Grajaú.
Ainda criança, quando residia em Barra do Corda, minha cidade natal, sempre tive grande interesse nos rostos incrustados na fachada da Igreja Matriz. Nunca me contentei com a definição de que aqueles eram os padres mortos pelos índios no "Massacre de Alto Alegre ", sempre quis entender algo mais sobre esse acontecimento. Esse interesse aumentava sempre mais ao observar as relações conturbadas entre brancos e índios na região, que sempre estouravam em conflitos pela posse de terras indígenas, perto da área conhecida como Alto Alegre.
Quando ingressei na faculdade, no curso de Licenciatura em História na Universidade Estadual do Maranhão/UEMA, vislumbrei a possibilidade de elucidar meus interesses sobre esse evento histórico. Assim, esta foi uma escolha natural para o tema de minha monografia, pois deste modo implementaria uma pesquisa que sanaria minha curiosidade, entendendo mais claramente a amplitude do fato histórico em questão e suas causas, além de homenagear minha cidade, Barra do Corda.
Iniciando a pesquisa, logo me deparei com obstáculos: grande dificuldade de conseguir material, pois temos no Maranhão poucos trabalhos específicos sobre o assunto, bem como o reduzido conhecimento desse evento histórico pelos profissionais de história. Então, busquei a ajuda do professor Zanoni, grande pesquisador da cultura Tenetehara, que prontamente me forneceu várias indicações de fontes e indicou o caminho que deveria seguir em minha pesquisa. Ainda, fui em busca da professora Júlia Constança que entusiasticamente entrou nessa tarefa comigo, vindo a tornar-se minha orientadora.
Para conseguir meu objetivo de adentrar nos reais motivos do dito massacre e quebrar mitos já dogmatizados na cabeça dos regionais, tive que fazer uma "reconstrução histórica" de todo o ambiente que norteia esse fato. Para tal tarefa, centrei-me na consulta de jornais da época (arquivados na Biblioteca Benedito Leite) e publicações e documentos da biblioteca do Convento do Carmo em São Luís, confrontando estas com a literatura rica, embora escassas, que trabalham baseado no tema "Massacre de Alto Alegre". Deste modo, o trabalho em questão (re)visita a província de São José da Providência perpassando toda a história do Alto Alegre e a saga dos frades Capuchinhos nessa missão. Esses desbravadores em busca de almas para o cristianismo não percebem a gravidade e as conseqüências de tentar erradicar os costumes e tentar mudar a vida do índio, que responde com as armas que tem.
Com essa tarefa de reconstruir para entender, os capítulos ficaram definidos do modo disposto a seguir.
No primeiro capítulo senti a necessidade de um breve ensaio sobre o modo como o indígena era visto pelo Capuchinho, este preso a um forte etnocentrismo que o fazia desconsiderar o modo de vida indígena como cultura. Ainda, comentar-se-á o momento histórico que se vive no Brasil, inicio da República, de modo a contextualizar o tema no tempo.
O segundo capítulo traz o início da Missão Capuchinha em Barra do Corda e a fundação da colônia de São José da Providência, mostrando seu crescimento, modo de organização e o trato com os índios.
O capítulo posterior faz uma breve biografia sobre João Caboré, enfocando os motivos que o levaram a arquitetar e liderar o movimento indígena que resultou no "Massacre de Alto Alegre".
No quarto capítulo, a partir de fragmentos de jornais e de alguns autores, faz-se uma narrativa sobre o ataque a São José da Providência e as retaliações das tropas do governo, de Barra do Corda e de Grajaú.
A partir de tudo que foi exposto nos outros, a quinta parte comentará as possíveis causas que, somadas, levam à revolta indígena e ao ataque da colônia.
Os Jornais são o assunto discutido na sexta parte. Analisa-se o posicionamento dos dois jornais que se destacaram na cobertura do acontecimento (O NORTE e o DIÁRIO DO MARANHÃO). Tenta-se entender o posicionamento antagônico de ambos, de modo a se perceber como as informações eram passadas para a sociedade. Esse capítulo é construído a partir da leitura das fontes primarias dos jornais, que em seus artigos demonstram vícios em relação ao fato.
Na penúltima parte, demonstra-se a nova tentativa missionária de se abrir a missão do Alto Alegre em 1959. Esse capítulo adentra a pesquisa como um fato ilustratório, sem a intenção de um estudo mais aprofundado, fato que renderia uma nova monografia. Assim, o capítulo em questão, apenas entra no bojo da monografia para informar aos interessados, que a saga de Alto Alegre não termina com o massacre, mas tem um novo capítulo 60 anos depois quando é definitivamente retomado pelos índios.
Por fim, na última parte, procuro discutir os reais motivos que desencadearam a revolta indígena, afirmando que o "Massacre de Alto Alegre" foi gerado por todo um somatório de desavenças, intrigas e insatisfações que desembocaram em um choque cultural entre índios e brancos, tornado-se um conflito sóciopolítico, onde o indígena reage em defesa de sua existência como tal.
Assim, essa leitura adentra em um marco do sertão maranhense, um marco de benção e dor, fé e sangue. Um terreno da história cheio de vícios e preconceitos, onde os papéis se misturam e heróis são vilões ou vilões são heróis. A hecatombe de Alto Alegre ainda é uma triste página escura na história do Maranhão.

2. A ORDEM E O OUTRO.

A ocupação da América fez-se, historicamente, como uma apropriação forçada, predatória e violenta ao máximo, pois o indígena era considerado como uma propriedade disponível. Aqueles que chegavam da Europa, à época das grandes navegações, consideravam-se portadores de uma cultura superior, autorizados a usar e até mesmo a escravizar as pessoas, com o direito de julgar e impor-se sobre a vida do outro.
Essa era uma visão "etnocentrista" que acompanhava todos os provenientes da Europa. Estando imbuídos dessa visão também os missionários Capuchinhos que desconsideravam a cultura indígena e se consideravam autorizados a destruir essas "supertições" e colocar conceitos de civilização nesse povo "selvagem e bárbaro".
O etnocentrismo, segundo Everardo P. G. Rocha é definido como:
Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores (...). No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença.2

Assim, o etnocentrismo é um julgamento do valor cultural alheio, do "outro", a partir de uma comparação com a cultura do grupo do "eu", isto é, a cultura externa a de um determinado grupo fechado é tida como inferior.
Deste modo, os Capuchinhos definem o índio a partir de seu referencial ético condenando as atitudes indígenas, pois se baseiam em estruturas mentais diferentes das suas e que eles não aceitam. Esta visão etnocentrista dos Capuchinhos é demonstrada já na primeira missão Capuchinha ao Maranhão, onde Claude d'Abbeville comenta "que não existe debaixo do céu nação mais bárbara e cruel que a dos índios do Maranhão e circunvizinhanças... creio que tenha jamais havido nação mais bárbara, mais cruel e desumana do que essa3".
Então, os costumes indígenas como a nudez, o habito de pintar a pele e a poligamia eram vistos como gestos brutais, deturpadores da natureza, selvagens e repugnantes.
Já no fim do século XIX, essa visão puramente etnocentrista e pautada em parâmetros de avaliação cultural europeu ainda fazia parte do modo de trabalho Capuchinho. Afinal, a própria palavra "catequese" denota aculturação, pois se emprega um processo de substituição de uma cultura dita selvagem por um modo de vida próximo do europeu. O processo de catequese tem caráter pragmático aliado a uma ação de tipo manipulatório.
Era essa a missão dos Capuchinhos que vêm ao Maranhão em 1893 com um ambicioso projeto, muito além da simples difusão da fé. Buscava-se um trabalho amplo que atingi-se toda a vasta população indígena da região. Esse projeto envolveu um colégio interno para jovens indígenas em Barra do Corda e a criação da colônia de São José da Providência onde ficava o Instituto Feminino.
Estamos vivendo, nesse momento, os primeiros anos da República. Filosoficamente, esse é um período dominado pelas idéias positivistas, de grande influencia político-social e no meio intelectual, repleto de defensores do Estado laico e de outras medidas que contrariam os setores mais conservadores da Igreja. Algumas dessas medidas são ratificadas pelo Estado que entra em um relativo choque com a Igreja. Entretanto, a Igreja era necessária para levar os valores moralizantes que asseguram a ordem na sociedade, tal situação fazia da Igreja uma instituição ao mesmo tempo estranha, devido a sua dificuldade de se enquadrar no novo regime do país, e necessária ao sistema, pois é valioso instrumento na manutenção da ordem. Assim, a Igreja é retirada do poder central, não mais tomando corpo nas decisões do Estado. Entretanto, como afirma José M. G. de Almeida, a Igreja Católica "beneficiada pelos favores do Estado, mas expulsa por este das benesses do poder, ela exerce sobre o conjunto da população certo tipo de autoridade não oficial, mas implicitamente reconhecida pelo regime e por ele valorizada dentro de seus limites4".
O Governo Maranhense, imbuído dessa imagem da Igreja como necessária a ordem, mesmo com os positivistas não concordando com a ação da Igreja Católica junto à civilização indígena, convida os Capuchinhos e subsidia suas ações missionárias. Iniciando a missão com a instalação dos missionários no velho Convento do Carmo, no centro da capital maranhense, e logo depois continuando suas atividades em Barra do Corda.
A missão Capuchinha no Maranhão cria a colônia de São José da Providência, um estabelecimento agrícola onde poderiam melhor desenvolver seu trabalho, pois localizava-se em meio a diversas aldeias indígenas. Essa colônia abrigava diversas famílias de brancos e indígenas e se desenvolveu com grandes empreendimentos, como a instalação de uma fabrica de açúcar, plantações, bem como prédios para a escola e o convento.
A colônia prospera em meio a desavenças, total inadequação do processo catequético dos missionários e outros fatores. Os Capuchinhos não perceberam o grave erro que cometem de um infeliz conúbio entre catequese e colonialismo, duas faces que se juntam e se confundem. Eles adotam o que o antropólogo Darcy Ribeiro chama de:
(...) atitude etnocêntrica, dos que concebem os índios como seres privativos, dotados de características biológicas, psíquicas e culturais indesejáveis que cumpre mudar, para compeli-los à pronta assimilação aos nossos moldes de vida. Esta é a atitude tradicional dos missionários que movidos pelo desejo de salvar almas, consideram sua tarefa a erradicação de costumes, a seu ver heréticos e detestáveis, como a antropofagia, a poligamia, a nudez e outros5.

Em meio a vários problemas, não somente o inadequado processo de catequese, mas questões de disputa de terras, inimigos externos e outros, a Missão Capuchinha de Alto Alegre tem seu desfecho vitimado naquilo que entrou para a história como "Massacre de Alto Alegre". Este evento que, segundo o jornal O ESTADO DO MARANHÃO, é o maior massacre de índios contra brancos do Brasil6.

3. SÃO JOSÉ DA PROVIDÊNCIA.

O ano era 1893 e, a pedido do governo republicano no Maranhão, um grupo de Capuchinhos oriundos da província Lombarda, Itália, vem ao Estado com o intuito de evangelizar o povo da região amazônica.
Então, esses missionários que consideravam os indígenas "novos pagãos" sem valores religiosos, propuseram-se a converte-los e se consideraram autorizados a destruir as superstições locais e substitui-las com valores considerados evangélicos.
A cidade de Barra do Corda foi, assim, escolhida para abrigar a primeira missão dos Capuchinhos, não porque era centralmente localizada, mas também porque era circundada por uma grande população de índios Guajajaras e Canelas. Essa escolha de Barra do Corda devido a grande proximidade das aldeias é confirmada por Merlatti quando afirma que "os Capuchinhos da província de Milão haviam dado inicio a uma missão em Barra do Corda, numa região onde existiam umas tantas aldeias indígenas7."
Devido a Canelas e Guajajaras serem tradicionalmente inimigos, tornando-se difícil o trabalho com as duas tribos em conjunto, os missionários concentraram esforços na catequização dos Guajajaras, a maior das duas tribos.
Iniciado o trabalho, os Capuchinhos encontraram forte oposição por parte dos índios que resistiam à interferência nos seus hábitos, costumes e meio de vida. Deste modo, verificando-se que a tarefa de mudar a vida do índio adulto, que levam o "terço ao pescoço e seus costumes selvagens no coração", os missionários decidiram concentrar seus esforços na educação das crianças indígenas. Sobre o trabalho com as crianças indígenas e a retirada destas do convívio com a tribo, justifica o Frei Celso de Uboldo, em carta à Itália, afirmado que "o bem que se pode ser feito a estes selvagens é batizar os adultos (...) e tirar-lhes as crianças.8"
Assim, abre-se em Barra do Corda, no ano de 1895, uma escola para os meninos indígenas de até 14 anos de idade, onde "aprendem oficio de sapateiro, alfaiate, torneiro e carpinteiro, habituam-se ao trabalho do campo e estudam elementos de letras, arithmética, deveres civis e religiosos9". Essa Escola é o Instituto São Francisco de Assis, onde os jovens indígenas estão sujeitos a uma pesada rotina, bem diferente da vida que levavam na aldeia:
Às 5:30, os estudantes deveriam levantar-se; às 6:00 assistir a missa e em seguida tomar café da manhã; às 7:00 iniciavam o trabalho; às 9:30 assistir aula; às 11:15 almoçavam e tinham tempo livre para recreação; às 13:00 voltavam às aulas; às 14:00 faziam uma refeição leve e voltavam ao trabalho; às 17:30 regavam as plantas ou horta, limpavam e enchiam os recipientes de água; às 18:00 jantavam e descansavam: às 20:30 faziam reza noturna e em seguida iam dormir10.

Com o Instituto São Francisco de Assis, aberto em 1895, o Governo do Estado reconhece, um ano depois, no dia 26 de fevereiro de 1896, competência aos frades Capuchinhos para cuidar da educação dos meninos índios.
Logo, com o apoio do governo Estadual e o aparente sucesso do colégio masculino, os frades decidem aumentar sua atuação. Para isso, compram uma gleba de terra de 36 Km² situada a igual distância de Barra do Corda e Grajaú, em meio a um grande número de aldeias, a saber: Canabrava, Altamira, Coco, Sapucaia, Colônia, São Pedro, Cachoeira, Sardinha, Mundo Novo, Farinha, Uchôa, Naru, Mussum, Jurema, São Carlos e Morcego11. Entretanto, essa terra fazia parte de um território habitualmente ocupado pelos índios, seus legítimos donos, que haviam permitido a instalação em suas terras de Raimundo Ferreira de Mello, conhecido como Raimundo Cearense que, abusando da concessão que os índios lhe haviam feito, vendeu aos frades um direito de posse inexistente, iniciando um conflito que se agravou aos nosso dias. Assim, o Pe. Carlos de S. Martino Olearo fundou, em 1896, a missão do Alto Alegre. A colônia seria chamada de São José da Providência e estaria sob os cuidados de Pe. Rinaldo Panigada da Conterico (diretor), Frei Estevão, Frei Victor, Frei Celso de Uboldo, Frei Zacarias, Frei Vicente e Frei Angélico.
Sobre a criação da colônia, o Jornal O PORVIR noticia:
Os índios da Barra do Corda e do Grajahú começavam a experimentar a benéfica influencia da civilização que os missionários Capuchinhos procuram levar-lhes.
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Nos sitio 'Alto Alegre'nos exteda Barra com Grajahú, que a missão comprou, afim de que os numerosos índios da vizinhança tomasse costumes de trabalho e honestidade12.

Nasce a colônia de São José da Providência, onde os Capuchinhos pretendiam instalar o Instituto Feminino para as meninas indígenas sob a administração de Freiras Capuchinhas "prontas a educar suas filhas e fazê-las tementes a Deus e civilizadas13". Deste modo, um grupo de freiras Capuchinhas, escolhidas nas comunidades já presentes no Uruguai e Argentina, tendo a frente Madre Francisca, de Gênova, chega a São José da Providência no dia 28 de junho 1899, após 54 dias de viagem, sob intensa comemoração e palavras de "benedictus qui veni in nomie Domini14". No dia 30 de junho é inaugurado o Instituto Feminino.
Sobre o trabalho da colônia, o jornal O NORTE festeja:
Patrióticos e illustres barra-cordenses - coube-nos hoje o grande regoujo de ver penetrar no intimo das selvas a luz do evangelho e de lá dessas paragens nos trazer os filhos das mattas à instruírem-se na doutrina christã, nas artes, nas ciências, e na vida social da verdadeira civilização15.

A chegada das irmãs serviu para amenizar a apreensão e as suspeitas dos índios em relação aos missionários, fazendo renascer a confiança. É o que afirma o Pe. Celso de Uboldo quando coloca que "antes que chegassem as boas irmãs, os selvagens, desconfiados, nos viam com maus olhos16". Pois era difícil para os indígenas entender direito os motivos dessa presença missionária tão alheia a cultura deles, cultura tão pouco conhecida e ainda menos apreciada pelos missionários.
Para as madres no Instituto feminino foi estabelecido como objetivos: gravar bem na mente dessas pobres índias a noção de Deus nosso criador; Prepara-las para receberem o santo batismo e os sacramentos; Ensinar-lhes os principais deveres de boas filhas, de fiéis esposas e de ótimas mães cristãs; Ensinar-lhes as primeiras noções de letras; trabalhar com a máquina de costura, bordar etc. Ficando a Madre Superiora responsável por estabelecer os horários para o trabalho, estudo, recreação, oração e repouso17.
Pode-se perceber, ao se comparar as regras do colégio masculino de Barra do Corda e do Instituto feminino, que os índios estavam sujeitos a pesadas rotinas, de modo a realmente apagar sua cultura, não reconhecida de modo algum pelos frades que definiam as aldeias como "cidadelas da barbárie", e, dentro de parâmetros puramente europeus, implantar os costumes "civilizados".
Para conseguir as crianças, principalmente as meninas, os missionários iam até as aldeias e retiravam os pequenos índios, muitas vezes à força, o que gerava conflitos e uma certa hostilidade em relação a eles. As crianças eram arrancadas de suas mães ainda no período de amamentação, ressalte-se que os indígenas amamentam até cerca de dois anos, e mantidas incomunicáveis no internato do Instituto feminino. Certamente não se tratava de maldade, mas sim de um equivoco a respeito da natureza da educação que os frades acreditavam ser importante o fazer e não o entender.
Sem perda de tempo, prédios começam a ser construídos em Alto Alegre, como conventos para os frades e para as freiras, capelas, oficinas onde os índios seriam ensinados, bem como edifícios para escola e outro para dormitório de meninas18. Tal progresso nunca tinha sido observado no interior do Maranhão.
A colônia cresce e passa a aceitar a instalação de famílias de brancos ao lado das famílias indígenas, também, o Instituto passa a admitir as filhas de alguns cristãos não residentes em Alto Alegre. Essa medida tinha em vista facilitar o contato entre os frades e os índios, mostrando-os que estavam interessados apenas na educação.
A aceitação das meninas filhas de cristãos estava sujeita às seguintes condições: pagar 10 mil réis por mês pela alimentação e lavanderia, ficando gratuita a educação, e obrigação de seus pais prover a roupa necessária e pagar o uniforme que se usa no Instituto19.
Também, as famílias cristãs estavam sujeitas às regras dispostas abaixo:
1º) Todos os cristãos que obtiverem a permissão dos R.R. Missionários de morar na área de S. José da Providência têm a obrigação de colaborar com os Missionários na grande tarefa de civilização dos índios e, portanto, como bons cristãos, têm que dar bom exemplo no trabalho e nas praticas devotas. Deverão confessar-se com freqüência, participar da Missa todos os domingos e dias de guarda. Os que moram em S. José, cuidarão de assistir a Missa todos os dias e participar na reza di terço. Além disso, terão que ajudar os Missionários em caso de necessidade.
2º) O lugar para construir a casa onde morar será indicado pelos R.R. Missionários, assim como o terreno para o trabalho de cada ano.
3º) Os moradores podem fazer qualquer trabalho. A respeito da cana, os R.R. Missionários estão dispostos a abandona-la para cedê-la aos que trabalham na fábrica:
4º) Os que moram perto dos açudes têm a obrigação de cercá-los. Da mesma forma, têm a obrigação de limpar, duas vezes por ano, nos tempos estabelecidos pela lei, o trecho de estrada que lhes for indicado pelos Missionários.
5º) Os habitantes de S. José têm a obrigação de ajudar os Missionários nos serviços de utilidade pública na lagoa artificial, como também em manter limpas a estrada e a praça que pertença a S. José da Providência.
6º) Nenhum morador poderá criar, soltos, vacas, cavalos, porcos, cabras e ovelhas. Estando perto dos açudes, poderão criar porcos soltos desde que não prejudiquem a outros moradores.
7º) Todos os que plantam roças terão que dar cem dias de trabalho para a Casa dos Missionários, recebendo o salário correspondente.
8º) os moradores devem permanecer durante dez anos. Se alguém quiser sair antes do vencimento deste prazo, terá que se justificar diante da autoridade. Se as razões forem julgadas pertinentes, poderão vender as suas benfeitorias aos R.R. Missionários, ou a outra pessoa de acordo com os Missionários. Quando os motivos forem julgados inadequados e, mesmo assim, quiser sair, perderá tudo.
9º) Se alguém não respeitar as condições estabelecidas, não proceder corretamente ou for de escândalo ou de prejuízo á Missão, os Missionários apresentarão queixa à competente autoridade; se esta considerar justa a queixa, aquele será imediatamente afastado sem direito a indenização.
10º) Os Missionários abrirão uma escola publica em favor dos moradores. Os pais, porém, têm a obrigação de pagar os livros e tudo mais que for necessário para a aprendizagem20.

Assim, a Missão crescia aos poucos, tendo cada vez mais a presença de famílias indígenas que aceitavam, contemporaneamente, o batismo e o engajamento no trabalho de uma comunidade disciplinada e fraterna, mas alienante para os seus ritmos de vida. Lá já havia além da habitação dos padres, o instituto feminino, as casa dos residentes e as plantações de alguns produtos, como de café, da cana, do milho, do algodão, do arroz e de outros produtos, bem como uma fábrica de açúcar21.
Essa evolução da colônia de São José da Providência, no entanto, não era pacífica e os padres pareciam prever o que o futuro lhes reservava, como se pode observar neste trecho da carta de Pe. Celso de Uboldo à Itália:
Mais de uma vez corri risco de ser flechado. (...) Já deve estar ciente da perigosa situação e da grande luta que diariamente devemos sustentar contra os falsos profetas, os caciques e os mandões desta selva.
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A nossa vida esta sempre em perigo (...)22.

Também, o Pe. Carlos, superior local, em visita à colônia, informa ao superior provincial:
Fiz bem em não ir agora para a Itália. Os regatões modernos usam de todas as artes para caluniar e perseguir os meus missionários de Barra do Corda e de Alto Alegre. Um (...) inominado quaisquer, embebedando os índios poderia aprontar alguma coisa contra nós23.

Os "regatões modernos" a que os padres fazem alusão são os comerciantes e grandes fazendeiros locais que não estariam contentes com a atividade missionária. Isso será tratado em um capítulo mais a frente.
Como se pôde timidamente perceber nesse capítulo e como se observará no decorrer desta pesquisa, a colônia de São José da Providência, em Alto Alegre, esse aparente bem praticado em nome de Deus, na verdade mascara uma realidade onde as faces da catequese e do colonialismo se juntam e se confundem.

4. CABORÉ.

João Manoel Pereira dos Santos, o Caboré24, ao qual Olimpio Cruz se refere, em sua linguagem épica e romântica, como "Cauiré Imana25 - o cacique rebelde, o diabo das aldeias", era um astuto indígena. Esperto, audacioso e inteligente, criado por uma família de brancos, posteriormente passa a viver entre os seus e a habitar a colônia de São José da Providência, ele lidera o bem planejado ataque à colônia, após algumas desavenças com os frades.
O Caboré nasceu nas grandes florestas da Serra Branca, mais precisamente na aldeia do Jacaré. Ainda criança foi recolhido por uma distinta família de Barra do Corda, os Rodrigues. Desde jovem mostrava-se ativo e inteligente, despertando cedo o desejo pela vida errante nas florestas, partindo para junto dos seus aos doze anos de idade26.
Tornou-se em pouco tempo um dos mais bravos guerreiros da tribo Guajajara, sendo admirado e respeitado por todos.
É assim descrito fisicamente por Olimpio Cruz:
(...) à época do massacre, apresentava mais ou menos quarenta anos. Como os demais de sua raça, era de estatura mediana, de ombros largos, músculos rígidos e divididos. Possuía o abdômen um pouco avolumado, já demonstrando tendência para a obesidade, o que lhe prejudicava o porte atlético.
Só tinha o olho direito. O esquerdo havia sido vasado por um espinho de tucunzeiro (...). Sua boca era pequena, e os lábios, mais grossos do que finos, eram sombreados sobre o lado superior, por uma meia dúzia de curtos cabelos aconchegados e caídos nas extremidades.
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Durante as viagens costumava usar sobre a cabeça um gorro feito de couro cabeludo de macaco cuxiú ou de guariba27.
Tornou-se um chefe de autoridade e influencia indiscutível entre os Guajajaras. Quando a missão de Alto Alegre foi aberta, ele foi um dos primeiros a vir morar na colônia, junto com os seus subalternos.
Ele mostrava-se católico praticante, sempre freqüentando a igreja. Sobre isso, comenta Merlatti que "seu lugar era sempre perto do altar, parecia rezar com a maior devoção e era sempre respeitoso com os missionários28".
Os missionários estavam satisfeitos com o senso e liderança que Caboré exercia sobre os demais indígenas e, como ele era "fiel" aos frades, por extensão conseguiam melhor controle sobre os outros. Assim, para inspirar os outros ao sacramento e dar exemplo, os missionários decidem celebrar o matrimônio canônico de Caboré na igreja de Alto Alegre. Deste modo, ele casa-se em uma grande solenidade com a mulher que era sua esposa segundo as leis da tribo, a índia Gujã. A cerimônia de casamento de Caboré teve a participação de várias autoridades locais, desde o juiz da comarca local de Barra do Corda até a presença do governador. A grandiosidade do casamento de Caboré contribuiu para acender nele um sentimento de superioridade que o fará, mais adiante, não submeter-se mais aos desmandos dos frades como um reles capacho.
Presume-se que Caboré se mostrava homem de fé, temente a Deus, mas na verdade era um homem fiel aos seus próprios interesses, pois nunca perdera os traços de sua cultura indígena. Apesar de casado nas leis católicas, ele pratica a poligamia29, mantendo relações com uma índia de nome Lúcia. Isso desagrada os frades, afinal o catolicismo defende o casamento monogâmico.
Durante sua ausência, em uma de suas viagens, os frades, atendendo ao pedido de sua esposa, expulsam a amante de Caboré da colônia. Ao regressar, Caboré acata a decisão, reconhecendo que como cristão não lhe era licito ter duas mulheres. Entretanto, passados três dias, ele repudia a esposa, abandona a colônia e passa a viver com a concubina. Afastado da colônia, Caboré passa a tentar tirar da missão outros índios subordinados a ele e, também, passa a praticar atos de insubordinação contra a colônia.
Os frades, descontentes com a atitude de Caboré, que agora era visto como uma ameaça à missão, mandam prendê-lo. Ele foi capturado nas proximidades da aldeia Canabrava e conduzido à Alto Alegre onde ficou detido por quatro semanas "em um quarto, acorrentado ora pelos pés, ora pelos braços, ora pelo pescoço30". Após, Pe. Rinaldo na qualidade de superior da missão, liberta Caboré que parte sem mais reclamações, porém o projeto de vingança começava a se esboçar.
Lembre-se que Caboré era um grande chefe entre os Guajajaras, muito respeitado por todos, e o fato de ficar um mês detido como repressão e castigo desencadeou certamente nele um incontrolável desejo de vingança contra todos os brancos.
Com o plano já arquitetado, Caboré com alguns de sua tribo parte para São Luís com o intuito de encontrar-se com o governador do Maranhão a época, João Gualberto Torreão da Costa. No encontro, após longa conversa, o Caboré é agraciado com um título de nomeação para o cargo de chefe supremo da tribo Guajajara, ainda recebe armas, como "espingardas, rifles e munição de pólvora, chumbo e espoleta, inclusive uma pequena máquina de fazer balas e cartuchos, além de tesouras, facas, canivetes, facões e serrotes pequenos; ele recebeu também algumas ferramentas de lavoura, roupas feitas e outras coisas do agrado dos índios31".
Cabe frisar que não é pacifica entre os historiadores do assunto o exato momento em que ocorre esse encontro entre Caboré e o governador do Estado do Maranhão, João Gualberto Torreão. Alguns estudiosos, como Graziella Merlatti, dizem que Caboré foi agraciado com o título de chefe supremo dos Guajajaras por intermédio dos frades, ainda quando habitava São José da Providência. No entanto, outros estudiosos do assunto, como Olimpio Cruz, defendem que Caboré procurou o governador após a sua saída de São José da Providência. Nós compartilhamos dessa segunda leitura, visto que é desse encontro que Caboré consegue as armas que usaria no massacre e também o título que o ajudaria a persuadir os outros índios a acompanhá-lo no ataque, tudo parecendo claramente já parte de seu plano.
Ao retornar da capital maranhense, Caboré e seus subalternos passam a visitar várias aldeias e convocar estas para tomar parte em seu plano de atacar e destruir o Alto Alegre. Todos os chefes foram convidados a uma grande festa na aldeia de Caboré, onde seriam informados sobre o plano de rebelião contra os catequistas. Assim, Caboré consegue arregimentar índios das aldeias do vale do baixo e médio Mearim, Grajaú e do Pindaré, que não tinham ou tinham poucos filhos no Instituto de Alto Alegre. Entre os caciques destacam-se: Jaurauhu, Menerumam, Izanemana, Tataíu, Tuitina, Itanema, Arapuá, Manoel Justino (braço direito de Caboré no ataque e ex-residente de Alto Alegre), Uirahu (também conhecido como Gavião Real) e outros, ditos 'semi-civilizados', Luizão, Antonio Correia, Parica, Antonio Carlos e Pedro Velho, todos chefes de grandes aldeias32.
Às vésperas do ataque à colônia, 12 de março de 1901, grupos e mais grupos de índios chegavam a aldeia de Caboré para uma grande festa e aguardar a palavra do grande chefe. Logo, o Caboré, com o título que lhe fora concedido pelo governador em mãos, conclama a todos para a rebelião.
O discurso de Caboré é assim reproduzido por Olimpio Cruz:
Não era mais possível, disse Cauiré, aturar tanto abuso praticado pelo pessoal da missão estrangeira que queria escravizar a todos, (...) enfim, todos os residentes ali, que não os de sua raça, queriam encaixar nas cabeças dos índios que deviam levar a vida de outra maneira e não com eram ou deveriam ser. Eles queriam tudo ao contrario do que a tribo queria. Não podiam mais possuir três ou quatro mulheres, queriam mudar a língua, mediante a obrigação da leitura dos livros deles que só tinham de bonito algumas figuras. Além disso, ainda pretendiam mudar os costumes. Diziam que os índios não eram mais os legítimos donos das terras em que moravam. Certas pessoas constavam que as indiazinhas que adoeceram no Internato, teriam morrido envenenadas (sarampo). As mesmas foram sepultadas sem a presença dos pais, privadas do ritual das tradições e crenças. O perigo (...) não se estendia somente à sua taba e outras vizinhas; também ameaçava todas as que ficavam ao longo do Mearim, Grajaú e Pindaré ou até mesmo para as mais distantes33.

Com esse discurso, Caboré convoca todos a marchar contra a povoação de Alto Alegre e suas redondezas e matar a gente que não pertencia à tribo Guajajara.
Como visto, no discurso de Caboré, ele utiliza de elementos de falha dos frades no seu processo de catequização, o sentimento etnocêntrico destes, toca na questão da invasão das terras após a chegada dos missionários, também cita outros problemas que estavam a desagradar várias aldeias, tudo para instigar a animosidade já existente dos índios em relação aos frades. Ele, se utilizando da renegação da cultura indígena pelos frades, vem a favor da proteção aos costumes Guajajaras conclamando todos a se levantarem contra os brancos.
Naquela noite os índios cantam e dançam ao redor da fogueira, excitados pelo som dos maracás, sons típicos de uma vigília de guerra, alcoolizados, os índios preparam-se para o ataque a São José da Providência.

5. O TEMPO DE ALTO ALEGRE.
5.1. O MASSACRE DE ALTO ALEGRE.

Era o dia 13 de março de 1901, os índios aproximam-se furtivamente de São José da Providência sem serem notados, pois todos os cachorros do local haviam sido envenenados dias antes para que não denunciassem o grande movimento de índios. Às cinco horas da manhã, quando todo o povo estava na missa, os índios armados de espingardas, arcos e flechas, foices, facas e bordunas atacam a colônia.
O primeiro local atacado foi a capela onde estava sendo realizada a missa. O Pe. Zacarias, que celebrava esta, foi a primeira vítima a tombar alvejado por um tiro de espingarda. Naquele dia, a eucaristia não seria celebrada com pão e vinho, mas com uma mistura de sangue e fé.
Nas palavras de Graziella Merlatti, o massacre é assim narrado:
Repentinamente, o terror tomou conta de todos. Tiros, flechas lançadas contra os fiéis presentes, facadas, gritos selvagens e gritos de dor ressoaram na igreja e nos locais próximos, ouvidos somente pela frieza da mata. Estertores de morte, mãos juntas em orações de piedade: tudo deve ter-se fundido no breve tempo da violenta carnificina. Aos poucos, todos caíam por terra: capuchinhos, irmãs, meninas e fiéis. Os índios arrombam as portas do colégio e ali é consumada a carnificina, continuando depois entre os cristãos da vila34.

Também, o Jornal O Norte, em visita feita ao Alto Alegre após a retomada pelas forças do governo, faz a seguinte descrição do ataque:
Na Igreja, junto altar, foram assassinados Frei Victor e seu acolyto.
Os vestígios da lucta estão alli bem patentes.
Nos assoalhos da igreja e convento notam-se largas manchas de sangue, ora circunscritas a um só ponto, ora seguindo o movimento das victimas em fuga as mãos dos algozes.
Muito deve ter sofrido uma senhora a quem os índios não conseguiram matar na igreja, levaram de rojo até ao terreiro do convento, onde consumaram seu nefando crime.
O rastro de um pé de mulher impresso com o próprio sangue em muitos pontos visíveis da terrível trajectoria, dá perfeitamente a idéia dessa horrorosa scena.
Na igreja e convento, os moveis em desalinho e quebrados, leitos revolvidos, o sangue por toda parte, - traços terrivelmente sinistros do esforço supremo de victimas inertes, em busca de salvação da vida, - de encontro ao assassino, numeroso e armado, dão a copia fiel do que deve ter sido esse tormento lento, essa agonia de horas e dias de martyrio.
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A todos esses atos de nefando canibalismo, associaram os a mais perversa devastação.
Todos os instrumentos agrários do estabelecimento foram quebrados ou inutilizados; as casas arruinadas; roubados os trastes e objectos de valor, inutilizados os que puderam conduzir.
Esses mesmos atos foram repetidos em todos os pontos que foram pelos índios atacados.
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Antes de terem os índios assaltado o Alto Alegre, haviam já preparado em ponto próximo deste lugar, na estrada que se dirige a esta cidade, uma espécie de trincheira, formada de grossos madeiros derrubados um sobre os outros. Nessa emboscada iam caindo todas as pessoas que ião ou vinhão para o Alto Alegre35.

Com tais descrições feitas do massacre, já dá para imaginar o sofrimento e agonia consumados naquele dia de morte. Não obstante, observa-se que ocorreu literalmente a destruição da colônia de São José da Providência, pois todos os objetos e maquinas foram saqueados e destruídos e toda a população assassinada. Restaram de pé apenas algumas casas, talvez para servir de abrigo e fronte para os índios rebelados.
Os corpos dos mortos no massacre foram jogados em uma vala comum, sepultados no fundo de um barreiro antigo que havia por trás do Convento. Entre os mortos da população destacam-se: Frei Rinaldo de Paulo, Frei Victor de Bergamo, Frei Zacarias de Malenho, Frei Salvador, irmão Pedro Paulo, as irmãs Inês, Leonora, Maria Benedita, Natália, Epifêmia, Maria Ana e a senhora D. Carlota Bezerra, colaboradora do Instituto feminino.
Para evitar que as noticias do acontecimento chegassem às cidades de Barra do Corda e Grajaú, as estradas que davam acesso a essas cidades foram fechadas pelos índios que matavam todo e qualquer viajante cristão que tentasse cruzá-la. Durante dias, vários viajantes desapareciam na estrada sem chegar ao seu destino. Essa era uma estrada muito movimentada, transitada na época por comerciantes e fazendeiros que iam entre uma e outra cidade fazer negócios, também famílias inteiras de migrantes sucumbiram ante a fúria indígena ao tentar cruzá-la.
Após a destruição de São José da Providência os índios passaram a atacar as fazendas vizinhas e a elas levavam morte e destruição. Entre as fazendas atacadas cite-se a de Raimundo Cearense e a de André Maranhão que escaparam, mas tiveram as famílias mortas nesse ataque. Note-se que Raimundo Cearense dizia-se amigos dos índios, com quem mantinha relações comerciais, no entanto, teve suas terras atacadas, fato que somente reforça a hipótese de que os índios estavam determinados no seu objetivo de retirar todos os brancos de suas terras, não poupando nem mesmo supostos aliados.
Percebe-se que o plano de Caboré foi muito bem arquitetado: aproveitou-se do medo gerado pelas noticias, nas aldeias, de que os frades atacavam as aldeias e raptavam as crianças indígenas, o que havia criado uma animosidade em relação aos frades; utilizou-se de um discurso muito bem proferido, onde citou todos os problemas gerados pela presença dos missionários; conseguiu armas, manipulando o governador do Estado, com a desculpa de que esses "presentes" serviriam para a proteção de sua tribo, de fato serviram, além do título de generalíssimo; os cachorros da região foram envenenados dias antes para que não denunciassem o fluxo de índios perto de Alto Alegre; o ataque foi realizado no horário da missa, onde praticamente todo o povo estaria reunido devido a obrigatoriedade de assistir a celebração todos os dias; também, o povo estaria desarmado, pois não se levava armas de espécie alguma à celebração; fechado todas as entradas e saídas da colônia para que ninguém escapasse; ainda, fechou a estrada que ligava Barra do Corda a Grajaú, passando por Alto Alegre, de modo que as notícias não chegassem a essas cidades, evitando possíveis retaliações por parte da população destas.
Assim, nota-se que Caboré mostrava-se um bom estrategista. Sobre ele, Galeno E. Brandes, exaltando sua figura, comenta:
Que a ele não se negue, dentro dos parâmetros de sua cultura e índole, pelo menos a glória de um estrategista, a coragem de um intrépido, que, lutando contra as instruções, os ensinamentos que civilizados diferentes da sua quisera passar para ele e para os seus, preferiu romper com tudo e todos36.

Interessante faz-se ressaltar que os frades tiveram avisos sobre o ataque eminente, dias antes. Os índios que não aderiram à rebelião de Caboré e até alguns que faziam parte do movimento, mas que queriam livrar pessoas de que gostavam, chegaram a procurar os frades e alguns moradores para contar do ataque. Um desses casos, contam os regionais, foi o da figura lendária da região, a velha índia Cuzozo, que por várias vezes avisou Frei Vítor e Dona Carlota, mas estes desconsideraram o aviso acusando a velha de inventar mentiras para conseguir comida, também os frades não acreditavam que os indígenas seriam capazes de um ato tão traiçoeiro, se eles apenas estavam a fazer o "bem" para esses pobres "selvagens". Ao contrario, Pedro Freitas, residente na colônia acreditou nos avisos e deixou a localidade com sua família às vésperas do ataque. Ele, Pedro Freitas, foi um dos que confirmou para as autoridades o ataque a São José da Providência quando chegaram as noticia a Barra do Corda trazidas por dois sobreviventes37.

5.2. A GUERRA DO ALTO ALEGRE.

As noticias do ataque a São José da Providência chegam à cidade de Barra do Corda na noite do dia 16 de março, trazidas por dois fugitivos do cerco. Os fugitivos, assim que chegam à cidade, logo dirigem-se ao delegado de polícia , ao intendente, ao Frei Estevão e outros que logo cuidam das providências. Este é tido como o primeiro momento de conhecimento do massacre pela população de Barra do Corda. No entanto, cabe fazermos um adendo neste ponto de modo a fazer justiça, pois a primeira noticia do ataque a São José da Providência foi dado, no dia 15 de março, pelo índio José Viana, que se negou a participar do ataque e retirou-se para Barra do Corda, aqui chegando avisou o delegado Sabino Câmara, mas foi preso e, posteriormente, solto após a chegada dos sobreviventes38. Mas, ainda assim, foi arrolado no processo quando do julgamento dos índios presos ao fim da revolta.
No dia 24 de março, o jornal O NORTE acorda o povo barracordense com a manchete: HECATOMBE! SITUAÇÃO AFFLICTISSIMA. Assustando e acirrando os ânimos da população.
Informa, o jornal O NORTE:
Sob a dolorosa impressão destas trágicas palavras acordou esta cidade da sua habitual serenidade na noite de 16 do corrente mez. Eram 8 horas da noite quando dois cavalheiros, residentes no logar Catete, correndo à toda brida, vieram trazer a lúgubre noticia de que uma imensa horda de índios, atacando o logar Alto Alegre, estabelecimento agrícola dos padres alli residentes.
O acontecimento era tão original entre nós que, não obstante o estado de selvageria dos índios repugnava acredital-o.
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Os pequenos índios eram entregues sem a expontaneidade dos que não reconhecem as vantagens da civilização.
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Ultimamente, porém, as considerações dos indígenas para com os frades ião desaparecendo e as ameaças de tomada dos pequenos índios corriam das aldeias ao estabelecimento dos frades que confiantes de mais nessas feras com caracter humano, não ligavão importância a ellas.
Infelizmente essas ameaças tornaram-se em triste realidade e o modo assombroso com que nesta transformaram há de emocionar o mundo inteiro39.

Do artigo acima citado, atente-se que a descrição segue com clara bajulação à civilização ocidental; também, para o fato de que logo começam a se buscar motivos para o ataque, escolhido dentre os muitos, o pretexto dos meninos indígenas, pretexto esse popularmente conhecido nos dias atuais como o movente principal da revolta.
Uma comissão das autoridades locais havia sido formada para decidir as providências contra os indígenas, entre os membros: Fortunato Ribeiro Fialho (chefe político conservador), Arão Araruama do Rego Brito (juiz de Direito da Comarca), Temístocles Bogéa (intendente do Município), Frei Estevão Maria (vigário da paróquia), Major Sabino Câmara (delegado de polícia), Tenente Tomé Vieira Passos (comandante adjunto da Guarda Nacional), José Narciso Carneiro Leão (subdelegado e escrivão), Coronel Manoel Ferreira de Melo Falcão (líder político da ala liberal republicana), Coronel Epifânio Moreira de Sousa (líder político republicano), Coronel José Leonildo da Cunha Nava (ex-intendente e líder político de centro), Major Gerôncio Raimundo Nava (líder político local), Otávio Lobão (conceituado prático de medicina), Major Luiz Rodrigues de Miranda Leda (egresso das lutas de Grajaú dos Ledas e Moreiras contra Araújo Costa), e Frederico Pereira de Sá Figueira (diretor e redator do jornal O NORTE)40. Essa junta deliberativa decide pela proteção da cidade através de patrulhas noturnas e da instalação de um velho canhão sobre a ponte do rio Corda e Mearim, e uma expedição liderada pelo Tenente Tomé Vieira Passos41 para atacar e retomar o Alto da Alegre das mãos dos indígenas.
A essa expedição, vários civis aderem tomados pelo excitado desejo de desforra contra os indígenas. O número de adesão é muito grande e isso é demonstrado pelo comentário de Smith, colocando que "se possível fosse atender a quantas pessoas se apresentaram, a cidade teria ficado entregue à vigilância apenas das mulheres42".
A precipitada expedição parte de Barra do Corda no dia 18 de março com 80 homens43. Uma tropa de paisanos desorganizados, uns montados e outros a pés e mal armados. Todos confiantes em encontrar um grupo de índios armados apenas de facas e arco e flecha. Ledo engano, pois os índios tinham armas de fogo e muita munição, como visto, era o material cedido pelo governador João Gualberto Torreão a Caboré em um gesto de amizade.
A defesa da cidade foi organizada repartindo-a em zonas, de modo a melhor defendê-la, entregue à vigilância de grupos de cidadãos liderados por integrantes da junta deliberativa. Os grupos foram assim definidos:
Rua Formosa, sob o comando do coronel Epifânio Moreira de Souza, 40 cidadãos.
Rua Aarão Britto, sob o comando do Tenente-coronel José Leonil da Cunha Nava, 38 cidadãos.
Rua Laranjeira, sob o comando do Capitão Octavio Lobão, 40 cidadãos.
Rua Gonçalves Dias e Largo da Igreja Matriz, sob o comando do Capitão Sabino Camara, delegado de polícia, 36 cidadãos44.

Várias pessoas chegavam a Barra do Corda vindas das localidades vizinhas, tomadas pelo medo, em fuga, abandonando suas casas em busca de proteção para suas famílias contra possíveis ataques dos indígenas. Essas localidades eram as regiões vizinhas a Barra do Corda, como Cateté, Santa Maria, Seridó, Serrinha e outras45. Assim, as ruas da cidade se enchem de pessoas em fuga, pois estas, sem terem onde ficar, acampam nas ruas e praças transformando Barra do Corda em um campo de refugiados.
A expedição do Tenente Tomé, ao chegar a localidade conhecida como Fazenda Descanso, sofreu uma emboscada. Tomé e seus homens são obrigados a retornar a Barra do Corda com quatro mortos e quatorze feridos. Aqui, eles percebem que o número de indígenas rebelados é muito grande, em torno de quinhentos ou seiscentos, e que estão muito bem armados.
As noticias do ataque a São José da Providência chegam à cidade de Grajaú gerando pavor e confusão, e o Capitão Raimundo Ângelo Goiabeira reúne um grupamento de homens para também dar combate aos indígenas. O Capitão Goiabeira ficou conhecido por sua impiedade e crueldade nos combates contra os indígenas. Ele comete o mesmo erro do Tenente Tomé e na primeira expedição a Alto Alegre leva apenas 25 homens, sendo emboscado antes de chegar ao seu destino pelos índios liderados por Manoel Justino, retornando a Grajaú com um morto e vários feridos. Comenta-se que foi desse ataque que acendeu no Capitão Goiabeira o ódio e a impiedade contra os índios; pois nos combates contra os rebelados, apenas os lideres que eram capturados ficavam vivos, todos os outros eram mortos e, daí, sua fama de "matador de índios" se espalhava entre os indígenas gerando o medo destes de encontrar com a guarnição liderada por ele46.
Na capital do Estado, São Luís, e em outras grandes cidades do Brasil, bem como na Itália, a noticia chegava causando consternação, indignação e luto pela morte dos missionários.
O governo envia para Barra do Corda, no dia 26 de março de 1901, o Tenente-coronel Pedro José Pinto, proveniente da cidade de Picos47, para liderar e ordenar os ataques ao Alto Alegre. Ele é escolhido porque é conhecido pela moderação, bom senso e estima sendo o homem ideal para fazer cumprir as ordens do governo do Estado de que não se use de violência extrema contra os indígenas, pois estes voltarão pacificamente para suas aldeias.
Chega, também, de São Luís, a 09 de Abril, um reforço de soldados liderados pelo Alferes Manoel Gonçalves. Além deste reforço, ainda, a tropa de ataque teve a adesão de índios da tribo Canela, inimigos tradicionais dos Guajajaras, liderados pelos chefes Pahi e Delfino Oropo-ká. Essa ajuda dos Canelas é importante, pois eles conheciam as matas e podiam melhor guiar os soldados por dentro delas.
Sobre o auxilio dos índios da tribo Canela, o jornal O NORTE de 13 de abril afirma:
O auxilio dos Canellas é muito importante em tal emergência porque habituados à vida das mattas perseguem e combatem com grande valor os seus irreconciliáveis inimigos48.

Assim, uma tropa composta de 111 combatentes, sob o comando do Tenente-coronel Pinto, partiu de Barra do Corda para retomar o Alto Alegre, no dia 14 de Abril49.
O Alto Alegre servia de quartel-general para os rebelados. O ataque e a retomada de São José da Providência obrigou Caboré e os seus a fugirem para outras aldeias. O Alto Alegre torna-se agora sede das tropas do governo. No dia 03 de maio, apresenta-se em Alto Alegre, ao Tenente-coronel Pinto, o Capitão Goiabeira. Por fim, a tropa de combate aos indígenas estava fechada: Tenente-coronel Pedro José Pinto, Alferes Manoel Gonçalves, Tenente Tomé e Capitão Raimundo Ângelo Goiabeira.
Os índios sob o comando de Caboré foram sofrendo cada vez mais derrotas e os ataques às aldeias eram cada vez mais violentos apesar das ordens do comandante Pinto para que matassem o mínimo possível de índios.
Caboré começa a perder aliados, pois vários caciques deixam o movimento. Essa debanda foi motivada devido ao fato de que não havia mais munições e os diversos ataques dos soldados fazia com que os indígenas abandonassem as aldeias e suas plantações, perdendo toda a safra do ano50, o que estava gerando fome. Outro motivo foi o fato da liderança de Caboré estar afetando a de outros chefes, gerando um conflito de lideranças.
Sobre esse ultimo fato, comenta Zanoni:
O movimento se dividiu e cada qual voltou para seu grupo familiar (...). A liderança de Cauiré havia se projetado além dos limites culturais permitidos (...), havia se desencadeado um conflito de lideranças dentro do movimento51.

Continua, Zanoni:
O conflito de lideranças voltou novamente após a união contra o inimigo comum. Restabelecer o equilíbrio interno que significava o nivelamento político-econômico entre famílias extensas, entre lideres52.

Um dos primeiros líderes a deixar o movimento foi o cacique Jauarauhu, que após raptar Perpetinha, retirou-se em direção a Monção. O diálogo de ruptura entre Caboré e Jauarauhu, retratado por Olimpio Cruz em sua linguagem épica e poética, demonstra bem esse conflito de lideranças, o fato de um cacique não aceitar as imposições de outro que possuía sua mesma "posição social":
Cauiré fica sabendo, sou um chefe igual a ti. Também, sou forte e tenho muitos guerreiros valentes, tantos de minha taba, como de outras que tu não conheces. Os tembés são meus amigos! Ajudei-te e quero levar comigo, e meus companheiros, as três moças brancas. Por tua vontade, ontem fui onça suçuarana, mas posso virar canguçu desvairado para não acontecer mais do que já aconteceu!
Chega, Jauarauhu! Parte para bem longe de mim. E somente muito distante, vai semeiar a tua mistura de gente branca com a nossa; porém, não te esqueças de que os teus descendentes deverão sempre usar a mesma língua, e guardar os nossos usos, costumes e crenças. Do contrário, virão dias em que haverá muito de sofrer na ponta das flechas dos guerreiros descendentes deste Cauiré Imana que está te dizendo a verdade frente a frente53.

As três moças brancas citadas eram internas do Instituto feminino e estavam sob o poder e guarda do cacique Jauarauhu. Eram elas: Perpetua Moreira, Úrsula Ribeiro e Isabel. Das três, Ursula e Isabel foram salvas pelo Capitão Goiabeira e apenas Perpetua, conhecida como Perpetinha54, filha do Coronel Francisco José Moreira e Dona Eva Moreira, residentes em Grajaú, ficou em poder dos índios55, não se sabendo ao certo o destino dela.
Vários índios que deixavam o movimento ou fugiam em direção as matas de Monção, em aldeias próximas ao Pará, ou procuravam o Alto Alegre e se entregavam pacificamente ao Comandante Pinto, pois estavam desgastados pela desenfreada caçada que se seguiu nas florestas.
A zona da estrada de Barra do Corda e Grajaú durante os combates ficou totalmente despovoada, pois os indígenas estavam em fuga para outras regiões e os brancos haviam se retirado para cidades vizinhas em busca de proteção. Despovoamento que perdurou até cinco ou dez anos após o fim do ocorrido em Alto Alegre, quando os índios começam a retornar.
Após vários combates, estando Caboré enfraquecido, isolado, com poucos aliados, perseguido em todos os pontos da floresta e com pouca munição, ele é capturado pelo Capitão Goiabeira na aldeia Canabrava e levado a Alto Alegre no mês de Agosto. Afinal estava preso e algemado o general da selva, ou diabo das aldeias. Também, já havia sido preso, em 12 de junho, Manoel Justino, tido como o braço direito de Caboré no Ataque.
A prisão de João Caboré é noticiada pelo Jornal O Norte, trazendo satisfação a sociedade cordina, no dia 31 de Agosto de 1901:
Os resultados da grande catástrofe que tanto abalou a população da Barra do Corda e Grajahú, acham-se mais serenados com a prisão de Caboré.
Esse grande fascinora, terror das selvas, entregou-se a prisão no Alto Alegre, ao tenente-coronel Pinto, em dias deste mez.
Tiveram o mesmo procedimento Manoel Paiva, Serafim, Miguel e Trajano, chefes terríveis e sanguinários e que no dia da hecatombe e seus subseqüentes commetteram toda sorte de atrocidades56.

Com a prisão de Caboré, chega ao fim a revolta dos indígenas. Ele foi conduzido por tropas do governo à cidade de Barra do Corda, no final do mês de agosto. Como prisioneiro de guerra, adentrou a cidade em meio a comemoração da população local e execução do Hino Nacional, logo conduzido ao local que para ele havia sido reservado, a Cadeia Pública.
É estabelecido inquérito policial. Tem-se inicio o processo no dia 18 de Outubro de 1901 e o julgamento dos réus ocorre em 27 de Julho de 1905, findando o processo com a absolvição dos indígenas. Dos trinta e seis índios presos, vinte e um morrem na cadeia e apenas quinze índios foram julgados e absolvidos. Na defesa dos indígenas estavam Othelo Franco, Antonio Fialho e Enéas Franco; na acusação, o Promotor Osório Anchieta e, como assistente, o nobre jurista e jornalista Frederico Figueira.
O Jornal O NORTE atribui a absolvição dos indígenas à influencia da Maçonaria
Os Selvagens foram absolvidos somente depois que a Maçonaria excluiu do voto 24 jurados que haviam declarado que não dariam o veredicto favorável aos selvagens e que não cederiam ao poder de um governo que os privava da liberdade.
O veredicto em favor dos índios foi dado somente por 12 jurados partidários do governo; (...) [Absolveram-nos em base do principio pelo qual] os selvagens, sendo imbecis e cretinos, deviam ser considerados menores incapazes e, portanto, não responsáveis por suas ações! Declarados imbecis e cretinos, foram colocados em liberdade, não porque inocentes, mas por que, pela Maçonaria, os selvagens que destroem Missões e Colônias não são gente, mas bichos irresponsáveis pelos seu atos57.

Deste modo, percebe-se que os índios são absolvidos com base em seu caráter de semi-inimputabilidade dado a estes pelo Código Penal Brasileiro que os considera isentos de pena, pois ao tempo da ação praticada são incapazes de distinguir entre o certo e o errado equiparando-os ao estágio mental de imbecis e cretinos.
O Jornal O NORTE, não satisfeito com o resultado proferido pelo Tribunal do Júri, publica:
(...) o lucto, a desolação, o terror, a afflição de duas cidades - Grajahú e Barra do Corda - presas pela dor que o infortúnio de entes queridos levou à sanha dos canibaes; tudo quanto de mais horropilates pode offender a sensibilidade humana foi esquecido n'um momento de calma decisão do Tribunal do Jury desta cidade absolvendo todos os índios envolvidos n'aquele monstruoso atentado!!!
Respeitamos a decisão do Tribunal do Povo, mas aqui a registramos como triste remate desse longo e sanguinolento martyrio que impressionou dolorosamente o coração das populações até onde chegaram as peripécias da lúgubre tragédia58.

João Caboré morre antes do fim do processo. Ele morre a 13 de Novembro de 1901, oficialmente vitimado pelas febres paludes59. Entretanto, há polêmica sobre sua morte, pois suspeita-se que ele morreu pelos maus tratos sofridos na cadeia pública de Barra do Corda. No entanto, isso é apenas uma suspeita que foi levantada pelo Jornal AVANTE! na época, nunca foi provado ou se encontrou indícios reais de que teria morrido por motivo diverso da febre. Antes de morrer, ele recebe absolvição sacramental e a Unção dos Enfermos pelo Padre Roberto de Castellanzza, após se arrepender de seus atos.
Sobre a morte de Caboré, o Jornal AVANTE! levanta o questionamento:
Caboré era acusado ser o chefe principal do assalto e morticínio no estabelecimento dos frades Capuchinhos no Alto Alegre. Preso no local onde o crime foi cometido, onde os ânimos não podem estar livres de ódios e rancores, a morte de Caboré desperta fundadas suspeitas.
(...) não teria sido ella o resultado de um novo crime?60.

De fato, desperta fundadas suspeitadas compartilhadas pelos regionais e estudiosos do assunto nos dias atuais. Afinal, dos 36 índios presos, apenas 15 foram levados a julgamento, tendo 21 morrido na cadeia; é uma questão que merece nossa atenção, pois houve um morticínio consideravelmente alto em quatro anos de espera pelo julgamento. Entretanto, como foi colocado anteriormente, não há nenhuma prova cabal de que realmente Caboré ou os outros tenham morrido por motivo diverso da febre paludes, que havia se alastrado na região naqueles anos. Tal questionamento, então, fica apenas na base da especulação se constituindo como uma infundada suspeita.
Com o fim deste evento histórico, os números oficiais registrados pelo Jornal O NORTE afirmam que foram um total de duzentos mortos vitimados em São José da Providência. Já o número de índios mortos é impreciso, mas sabe-se que foi altíssimo.
As conseqüências, para os indígenas, que adviriam do confronto perpetrado em Alto Alegre seriam vários, podendo-se citar: despopulação, pois mais de 300 índios foram trucidados; deterioração das relações com os regionais, daquele momento em diante os Guajajaras começaram a ser isolados e evitados, ou até perseguidos nos seus relacionamentos comerciais com os regionais; degradação da imagem do índio que passou a ser considerado como violento, incivil, "bárbaro"; entre outras61. Já os frades mortos no confronto em Alto Alegre ganharam status de mártires, ou como a Igreja Católica os chama, "mártires da fé"; eles foram homenageados com os retratos de seus rostos incrustados na fachada da Igreja Matriz de Barra do Corda e ainda nos dias atuais, em comentários dos regionais, são lembrados como vítimas de um ataque cruel de selvagens mau agradecidos e sedentos de sangue.
Assim, fica na luz da glória e eternizados na fachada da Igreja Matriz de Barra do Corda estes frades mártires que não perceberam o infeliz conúbio entre catequese e colonialismo. E, se atribuir aos indígenas um caráter intrinsecamente falso e outras qualidades semelhantes é uma conseqüência, viva ainda nos dias atuais, desse conúbio.

6. CAUSAS DO MASSACRE DO ALTO ALEGRE.

As causas que levaram a eclosão do ataque dos indígenas a São José da Providência e ao assassinato de toda a população foram várias. Não se pode tentar entender esse evento histórico a partir de um único movente, mas de todo um conjunto, um somatório de fatores canalizados através da figura de João Caboré que manipula as emoções indígenas em ebulição a favor de sua vingança pessoal, o que resulta no "Massacre de Alto Alegre".
A relação entre os índios e os missionários nunca foi pacífica, pois estes nunca tiveram preocupação alguma em entender a cultura do outro, provavelmente, por considerar os indígenas inferiores, bárbaros e incivilizados. Os missionários em nenhum momento classificam os costumes indígenas como cultura. Tal situação fez com que os missionários tentassem a catequese baseado em princípios exclusivamente europeus, tentando sobrepor a sua cultura sobre a indígena, apagando qualquer traço da "vida animalesca" do índio.
Com o intuito de implementar seus objetivos, os missionários visam trabalhar com a catequese da criança indígena. Assim, passam a ir às aldeias em expedições que pareciam militares, pois sempre se faziam acompanhar por quatro ou cinco moradores da colônia, e retirar as crianças de suas mães, às vezes com o uso de força e a leva -las para o Instituto onde permaneciam isoladas em regime de internato. Esse isolamento era tão intenso, que nem quando as crianças estavam doentes era permitido aos pais vê-las.
A dificuldade em conseguir as crianças é relatada por Irmã Eleonora Tassone em carta escrita em 13 de novembro de 1899 à Itália:
(...) a coisa mais difícil para os missionários é conseguir as meninas: é preciso oferecer presentes e caminhar dias inteiros a cavalo pelas florestas. Muitas vezes, a vida do missionário corre perigos porque os caciques das aldeias não querem que as famílias as dêem. Um caso desses aconteceu, faz um mês, [quando Pe. Celso] havia reunido algumas meninas; já de volta para casa todo satisfeito, tentaram matá-lo e lhe levaram quatro meninas. Esteve muito doente a ponto de morrer, mas está melhor62.

Para entendermos como a separação das crianças afetava a sociedade indígena temos que ter em vista que a organização dos Guajajaras tem como alicerce a família extensa.
Maravilhosa é a lição de Zanoni sobre a relação familiar Guajajara:
Esta constitui-se de famílias nucleares, cujo chefe tem sob seu domínio suas filhas e sobrinhas. Isto porque a mulher na sociedade Guajajara tem um papel fundamental na manutenção da cultura. É a mulher que atrai para dentro do grupo familiar homens, os quais passam a fazer parte da família do pai pelo casamento, uma vez que o marido passa a residir na casa de sua esposa e a prestar serviços ao seu sogro. Dessa maneira, quanto mais genros tiver um chefe de família extensa, mais forte será economicamente e conseqüentemente, será uma família politicamente poderosa63.

Assim, a prática dos missionários de retirarem da aldeia e manterem em regime de internato as meninas índias resultaria na completa desestruturação da organização social dos Guajajaras, uma vez que essas meninas acabariam por aprender novos valores e novas técnicas estranhas à sua cultura. Também, ao se retirarem os meninos do convívio com a tribo, estariam privando-os de importante braço no trabalho agrícola.
Também, outro fator de desagrado aos indígenas foi a morte de vários internos vitimados pelo sarampo. Epidemia mantida em segredo pelos missionários para evitar alarde da população indígena. Mas ao descobrirem a morte de alguns internos, os indígenas pressionaram para que as madres permitissem às mães destes passarem um período no Instituto cuidando ao modo indígena de seus filhos, uma situação que os missionários foram obrigados a aceitar, mas que não os estava agradando.
Sobre a epidemia de Sarampo, Merlatti comenta:
A paz não devia durar muito. Lá pelos meados de fevereiro de 1.900, apareceu uma doença contagiosa (...). Já havia aparecido a alguns tempos, nas barrancas do rio Mearim e do Grajaú; chegou em Alto Alegre e se espalhou pelas aldeias; chegou também no colégio masculino de Barra do Corda e, em seguida, no feminino, trazendo desolação e morte. Adoeceram oito meninas. Logo em seguida, mais seis e, no passar de poucos dias, mais que a metade das alunas estava em condições lastimáveis. Durante um mês e meio, a epidemia enfureceu e foram 22 as vitimas entre as pequenas internas e cinco entre meninos e meninas da colônia. Nas aldeias vizinhas, morreu um número impreciso de pequenos e adultos. Entre os alunos de Barra do Corda, os mortos foram 28. A nada valeram as despesas para o tratamento e os sacrifícios. Entre os indígenas, nasceu e cresceu a desconfiança64.

Logo que a epidemia espalhou-se, surgiu entre os indígenas a acusação, plantada pelos inimigos da missão, de que os missionários estavam interessados em matar os filhos dos índios e planejavam secretamente a destruição de todas as sua tribos65. No entanto, controlada a epidemia, a situação na colônia volta a normalidade.
Os "inimigos da missão" citados são os comerciantes locais, a que os missionários constantemente se referem como "regatões" ou "mandões da selva". É uma questão polêmica. A mão-de-obra indígena e os seus produtos eram oferecidas de forma barata para os fazendeiros e comerciantes da região. Mas com a chegada dos missionários, estes passam a ter o controle da produção e da mão-de-obra dos índios não mais oferecida barata. Isso desagrada os comerciantes que passam a insuflar os índios contra a missão.
Conta Regina Helena Faria que:
O índio Luís Costa ao prestar depoimento no processo aberto (...) fez referências a constantes visitas que alguns comerciantes faziam às aldeias, aproveitando os horários do meio dia ou da noite, quando diminuía a vigilância dos frades, para negociar o produto das roças dos índios66.

Essa questão de comerciantes versus religiosos é um problema comum ao longo da história do Brasil. Sempre estes em seu trabalho reivindicaram a mão-de-obra indígena condenando aqueles que a exploravam em favor do lucro e isso desagradava os comerciantes que entram em conflito com eles. No Maranhão, tais atritos resultaram na expulsão dos religiosos Jesuítas do Estado durante a Revolta de Beckman no século XVII.
A colônia de São José da Providência cresceu e passou a atrair muitas famílias de brancos para suas redondezas, invadindo cada vez mais o território indígena. Lembre-se que o próprio São José da Providência era uma invasão. A comunidade indígena sentia-se sempre mais isolada em seu território invadido, pois para essas populações a terra é um fator de sobrevivência fundamental, não somente econômica, mas cultural.
Sobre essa questão comenta Zanoni:
A ocupação do território por parte dos Capuchinhos, com sua presença e trazendo brancos para o estabelecimento, com o impulso significativo à produção agrícola do estabelecimento e, certamente, com a construção de vias de acesso, fez com que a ocupação do território indígena aumentasse sempre mais. De fato, pelos artigos, podemos ver que havia muitas fazendas instaladas na região. Provavelmente muitos acorriam para lá atraídos pelos benefícios que a missão oferecia no campo da saúde, ou educação, ou até pela presença religiosa67.

Então, como já foi explicitado, a terra sendo um fator de fundamental importância e necessidade para os indígenas, estes não poderiam ficar sofrendo a redução destas ante a constante invasão gerada pelo atrativo do desenvolvimento de São José da Providência e a conseqüente abertura de estradas para dar maior acesso a colônia.
Deste modo, todos esses acontecimentos funcionam como moventes para o desencadeamento da revolta contra os missionários. Esses fatores plantados aos poucos e aumentando o medo e a revolta dos índios foram muito bem explorados por Caboré que soube utiliza-los contra a missão de Alto Alegre. Os frades Capuchinhos criaram as situações que levaram a sua própria destruição.

7. O OLHAR DOS JORNAIS.

A história da Missão Capuchinha nessa região pode ser vista nas páginas dos jornais. Estes sempre noticiaram a ação dos missionários, desde o começo do empreendimento em Barra do Corda até a destruição de São José da Providência e os efeitos posteriores. Procuraremos, neste capítulo, mostrar um pouco da visão que estes tinham sobre os acontecimentos do Massacre de Alto Alegre. Para tal assertiva, pautamo-nos em comentar o papel dos dois jornais que se destacam na cobertura jornalística do acontecimento em questão: O NORTE e o DIÁRIO DO MARANHÃO.
O jornal O NORTE que se considerava órgão de imprensa defensor das idéias republicanas, de propriedade de Isaac Martins e Dunshee de Abranches, era de Barra do Corda. O jornal DIÁRIO DO MARANHÃO, órgão ligado ao governo republicano da época, era de São Luís. O semanário O NORTE relata em primeira mão os fatos, trazendo boletins diários sobre o combate aos índios. Já o DIÁRIO DO MARANHÃO, principalmente, transcreve os telegramas de comunicação entre as autoridades da região do conflito, o governo de São Luís e a tropa enviada para a área dos combates.
Antes de prosseguirmos, cabe frisar que O NORTE sempre fez fartos elogios ao trabalho dos Capuchinhos. Desde o começo da missão, este órgão acreditou piamente que os missionários eram o melhor caminho para libertar os índios de seus "maus hábitos e levar-los a civilização".
Deste modo, O NORTE, como defensor da prática catequética dos frades, quando ocorre o ataque a Alto Alegre exige uma intervenção mais enérgica do governo para a repressão contra os indígenas, pregando que "se a repressão tivesse sido à altura do grande crime, a população não estaria imigrando receosa de novos ataques e confiaria na segurança da lei68".
Ainda, continua O NORTE:
O que aconteceu é tão execrável que nem as medidas mais rigorosas que poderão ser adotadas irão satisfazer a indignação pública.
O governo do Estado, avaliando a enormidade do atentado e considerando as notáveis proporções da sua criminalidade, reprima com todas as normas do direito e da justiça este ato de vandalismo que vem a encharcar de sangue amigo o solo pátrio e arruinar completamente um região digna de sua atenção. Assim esperamos!69.

Por fim, critica dizendo que "essa complacência que o governo do Brasil dispensa a essa raça perigosa, armando-os dos melhores elementos para hoje combater-nos70".
Sendo, então, o Jornal O NORTE, partidário de uma nova matança desenfreada, mas desta vez contra os índios; não admitindo a posição do governo, que eles chamavam de passiva, de tentar a melhor solução para o problema tentando evitar que mais mortes ocorressem. O NORTE defendia que se seguisse, assim, pela Lei de Talião, "olho por olho e dente por dente", e queriam que os índios pagassem com o seu sangue o que haviam derramado.
Do contrário, o DIÁRIO DO MARANHÃO é partidário da posição do governo de que não se use de violência contra os indígenas a fim de que, pacificamente, voltem para suas aldeias e, que os frades devolvam os filhos dos índios que estavam no internato em Barra do Corda.
O DIÁRIO DO MARANHÃO era contrario à intervenção aos índios pelos missionários, à catequese, defendia idéias positivistas em voga na época através de uma série de reportagens dando idéia de que:
O elemento índio será eliminado com o tempo pela seleção natural e a lei da concorrência vital, sendo então absorvido pelas raças superiores que, hoje o cercam71.
Tal posicionamento faz o DIÁRIO DO MARANHÃO comentar a revolta indígena justificando esta:
Gritos de angustia erguem-se nos sertões maranhenses (...). De um lado a cohorte de aborigenes sob o impulso do desespero e o amor da liberdade, de outro, o grupo de alienígenas aprovado por grande parte dos naturaes civilizados. Uns defendem do guante férreo do ideal catholico, quiçá do cilico e das torturas inquisitoriaes, os seres fracos que procrearam; outros luctam por si mesmos, querendo sujeitar aquelles a crença de um torquemada - a fera do catholicismo que, com o auxilio de seus colaboradores, queimára, no espaço de 18 annos apenas 10.220 pessoas vivas, aplicando outras atrozes a 97.321 outras, pelo único crime de pensarem livremente ou por que o phanatismo religioso tivesse para elles inventado a heresia.
São dois partidos que jamais poderão conciliar-se um, cuja religião não quer a liberdade, o outro affeito a campeiar com absoluta idependencia.
O problema das relações entre ambos, por conseguinte, deve offerecer bem mais complicações do que a primeira vista é dado supor. É simples julgal-os em abstrato; é difícil julgal-os, tendo em justa consideração dos factores do levantamento - o instinto, a índole, os preconceitos72.

Pode-se perceber que os jornais citados tinham claramente visões diferentes sobre o acontecimento de Alto Alegre e as medidas que se deveriam tomar contra os indígenas. É necessário ter em mente, para se entender o posicionamento dos dois, a localização geográfica de cada um. O NORTE, defensor dos Capuchinhos e de uma retaliação aos índios estava localizado em Barra do Corda, diretamente afetado e em contato com os acirrados ânimos da população e, talvez isso, o tenha feito adotar esse posicionamento, que era o da maioria dos regionais. O DIÁRIO DO MARANHÃO, por sua vez, localizado em São Luís, ligado ao governo, é partidário das idéias deste e não é afetado por um sentimento revanchista de desforra.

8. O SEGUNDO ALTO ALEGRE.

Este capítulo foge do escopo do trabalho, afinal não temos a pretensão de esgotar o assunto, mas faz-se interessante para se delinear uma noção de que os conflitos entre indígenas e regionais estão vivos ainda hoje. Também, mostrar que a saga de Alto Alegre não finaliza com o massacre, mas prosseguiu anos depois quando os Capuchinhos tentaram retomar o trabalho missionário em Alto Alegre, no final dos anos 50, mas desistiram duas décadas depois pressionados pelos indígenas e pela ala da Igreja partidária dos índios.
Assim, após algum tempo de findado a revolta dos indígenas, algumas famílias retornaram ao Alto Alegre, no entanto, a missão Capuchinha havia sido fechada pelos Superiores que temiam pela vida dos frades. Os capuchinhos só retornavam a Alto Alegre em romaria para homenagear os mortos na triste aventura de São José da Providência.
Mas no ano de 1959, o Superior da Custódia Provincial do Maranhão, Frei Cosme de Borno, abre novamente a missão do Alto Alegre73. Os dois primeiros frades escolhidos para essa nova missão foram Frei Aniceto de Tavernola e Frei Henrique de Mantova, com o objetivo de cuidar da assistência religiosa dos moradores de Alto Alegre e dos povoados vizinhos, como São Pedro dos Cacetes, Jacaré, Genipapo dos Vieiras, bem como novamente começar o trabalho de evangelização dos índios da região. Com a chegada dos frades, varias famílias provenientes do Piauí, Ceará e outros municípios do Maranhão passaram a morar em Alto Alegre. Novamente a terra indígena volta a ser invadida.
No local é erguida uma escola para a instrução das crianças, a igreja e o convento para os frades Capuchinhos. As irmãs Capuchinhas também voltam a Alto Alegre, lá abrindo a Casa de Noviciado (um convento) e um posto médico74.
No ano de 197875, a FUNAI procede com a demarcação da reserva indígena de Canabrava e, o Alto Alegre é incluindo dentro dela. Os frades e os moradores se negavam a deixar o lugar.
Para negociar sobre a situação, o novo Superior da Província do Maranhão, Frei Martírio Bertolini, convoca uma comissão formada por um representante do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) - órgão ligado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que não apoiava a nova missão em Alto Alegre - , um representante do CPT (Comissão Pastoral da Terra), um advogado e um religioso Capuchinho. Ela acabou definindo uma reunião em Barra do Corda.
Em Barra do Corda, na reunião, estavam presentes: Dr. Paulo, superintendente da Funai de Brasília; Dom Tomás Balduino, bispo de Goiás e presidente do CIMI, Dom Valentim Lazzari, bispo de Grajaú; Frei Oswaldo Coronini, representante dos Capuchinhos; um grupo de índios; alguns moradores de Alto Alegre; além de jornalistas e moradores de Barra do Corda. Dessa reunião ficaria decidido que os Capuchinhos e os moradores deveriam deixar as terras dos índios.
Os Capuchinhos, então, recorrem, no ano de 1980, à Justiça Federal de São Luís, no processo nº 1794/80. Decide-se, assim, pela condenação da Funai ao pagamento de uma indenização aos moradores do Alto Alegre, para que estes deixem o lugar76.

Os padres não concordando com a decisão de deixar o lugar comentam que:
Era impossível lutar contra as pressões da opinião pública, contra a força das armas do Governo Federal e contra a ganância dos índios de tornar-se donos de tudo o que havia em Alto Alegre (...)77.

Ao deixarem o lugar, os prédios de Alto Alegre foram todos destruídos, constituindo um verdadeiro atentado à história. No local, da lembrança da passagem Capuchinha apenas resta em pé uma parede do velho convento que abrigou os missionários.

9. CONCLUSÃO.

Neste retorno ao Alto Alegre, onde se perpassou por toda a história da colônia de São José da Providência, notamos que o movimento que se deflagra em 1901 foi uma revolta de proporções que não ficou restrita apenas a região de Barra do Corda, mas que atingiu como um aríete toda a população Guajajara e gerou conseqüências para esse povo que ainda hoje se perpetuam. Mais de um século já se passou, mas as feridas do conflito ainda continuam abertas. Os Guajajaras são vistos com desconfiança e desprezo por grande parte da população de Barra do Corda e Grajaú. Esse difícil relacionamento tem marcado os conflitos entre brancos e índios, que se agravou nas décadas de 1970 e 1980, pela disputa do vasto território entre os rios Grajaú e Mearim78. As lembranças do evento são mantidas vivas pela Igreja que elevou seus mortos à condição de mártires do Cristianismo e, desde os anos 50, exibe na fachada da Igreja Matriz de Barra do Corda, em mármore de carrara, as esfinges dos missionários Capuchinhos e irmãos mortos no conflito de Alto Alegre.
A revolta do Alto Alegre, enquanto que para os frades e a população branca em geral teve um caráter de massacre, para os indígenas é considerada como uma defesa dos costumes e da terra.
Partidário dessa posição, comenta Zanoni:
Eles reagiram como se o conflito fosse um conflito cultural. Isto é, os padres que estavam ali se tornaram o inimigo a combater e a tirar do meio deles se quisessem continuar Tenetehara. Assim, após vários momentos de tensão, o que fez deflagrar o conflito foi a interferência dos religiosos na ordem social e o desrespeito à liderança. Isto uniu todos os lideres da região, sendo que o desrespeito a uma família extensa poderia levar ao desrespeito a todas as outras e, portanto, a perda de autoridade por parte dos Tenetehara79.

Portanto, a destruição de São José da Providência foi uma maneira de retaliação que os indígenas acharam para combater uma ofensa direta contra seu modo de vida e costumes. Esse caráter de "massacre" atribuído à revolta indígena é fruto, sob o ponto de vista antropológico, de um preconceito latente de uma população atingida diretamente no confronto e que considera o indígena como dessemelhante, ao passo que o Capuchinho é um igual e ostenta uma posição privilegiada dentro da sociedade, misturando humanidade e santidade, sendo inadmissível tal crime contra ele. Mas como condenar a intolerância indígena aos moradores de Alto Alegre, se a Igreja estava sendo intolerante com o modo de vida e os costumes dos índios? A sociedade critica a atitude assassina dos índios, mas se esquece que a Igreja Católica durante a Idade Média cometeu os mesmos atos assassinos contra aqueles que discordavam do seu modo de pensar. O Tribunal da Inquisição condenou à morte os que não compartilhavam das suas idéias. Os indígenas apenas se insurgem em defesa de sua própria existência como tais.
Contesto, ainda, a tentativa de resumir o acontecimento a um conflito entre Capuchinhos e Guajajaras, devido a linha catequética daqueles, pois essa explicação parece um pouco simplista. Pois se o problema fosse apenas os Capuchinhos, como se explicariam os ataques às fazendas vizinhas após a destruição da colônia? Presume-se, aqui, que os indígenas também estavam em busca de reaver e responder à continua invasão de suas terras. Ainda, em depoimento de um dos índios arrolados no processo do massacre, ele afirma que "a vontade de arrancar com força os seus filhos do colégio dos missionários só era uma bobagem inventada pelos jornalistas para passar poeira nos olhos dos tolos80". Tais colocações, principalmente esta última, contribuem para se quebrar o mito de que o único movente para a revolta indígena tenha sido a atuação Capuchinha. Pode-se, entretanto, considerar a missão Capuchinha como o catalisador para deflagrar a revolta indígena.
Claro está, que a presença Capuchinha acaba gerando ou agravando todos os problemas que levam ao ataque a São José da Providência. Os missionários haviam invadido o território indígena, sem permissão, e lá agora queriam mandar sobre os índios e impedir que eles vivessem segundo seus costumes, esse comentário se espalhou por todas as aldeias, inclusive as distantes; além de a criação da colônia e a abertura de vias de acesso terem aumentado o nível de invasões ao território indígena; e, também, o fato de os indígenas não poderem tecer livremente suas relações com a sociedade regional visto que a produção passava toda pelas mãos dos missionários.
Os Capuchinhos erram em face da história, pois praticam atos de um processo catequético já fracassado em missões anteriores; erram em fade da ciência, pois a natureza não dá saltos, não se pode sobrepor uma cultura a outra, ainda mais em processos instantâneos como tenta o modo catequético; erram em face da lei, pois ao retirarem os meninos indígenas forçadamente de suas famílias cometem, segundo a lei penal, o crime de rapto.
Então resta-nos reafirmar que o "Massacre de Alto Alegre" foi gerado por todo um somatório de desavenças, intrigas, medo e insatisfações que levam a um choque de cultura entre indígenas e brancos que se desenvolve em conflito sociopolítico. E, não apenas fruto de um errôneo processo catequético. Esse choque de culturas é mascarado pela vingança pessoal de João Caboré contra os Capuchinhos, mas olhos atentos percebem que isto é produto do meio, fruto da conjuntura da época, de uma situação maior, de todo um contexto histórico que traz conseqüências ainda nos dias atuais.
Por fim, ressalte-se, a valiosa lição de Zanoni, que o choque cultural que desencadeou conflitos entre bancos e índios ao longo da história constitui-se como condição fundamental para que o indígena continua-se a viver como tal, pois não permitiu a sua total integração a outro modo de vida permitindo-lhe, em contrapartida, sobreviver, diante de fortes pressões, sem deixar de ser culturalmente índio81.

# REFERÊNCIAS #

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A MENINA Ursula livre dos índios. Diário do Maranhão, São Luís, 3 jun. 1901. n. 8331, p. 2.

ATO PÚBLICO. Diário do Maranhão, São Luís, 6 abr. 1901. n. 8282, p. 2.

AS CAPTIVAS. O Norte, Barra do Corda, 13 jul. 1901. n. 476, p. 1.

ATAQUE dos índios. Diário do Maranhão, 3 maio 1901. n. 8305, p. 2.

ATAQUE dos índios. O Norte, Barra do Corda, 5 ago. 1901. n. 656, p. 2.

COLLABORAÇÃO - índios e frades. O Norte, Barra do Corda, 18 maio 1901. n. 469, p. 1-2.

COLLABORAÇÃO - índios e frades. O Norte, Barra do Corda, 25 maio 1901. n. 470, p. 1-2.

CONTIGENTE militar. O Norte, Barra do Corda, 15 jun. 1901. n. 473, p. 2.

EFEITOS da expedição. O Norte, Barra do Corda, 27 abr. 1901. n. 466, p. 1-2.

HORROROSO! Hecatombe!. O Norte, Barra do Corda, 24 mar. 1901. n. 461. p. 1-6.

ÍNDIO caboré. Avante!, São Luís, 7 dez. 1901.

ÍNDIOS - depoimento do pequeno Romão. O Norte, Barra do Corda, 12 out. 1901. n. 487, p. 2.

ÍNDIOS do Instituto. O Norte, Barra do Corda, 2 nov. 1901. n. 490, p. 2.

ÍNDIOS e frades. Diário do Maranhão, São Luís, 1 abr. 1901. n. 8279, p. 2.

ÍNDIOS e frades. Diário do Maranhão, São Luís, 6 abr. 1901. n. 8282, p. 1.

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OS ACONTECIMENTOS do Alto Alegre - A carnificina pelos índios. Diário do Maranhão, São Luís, 10 abr. 1901. n. 8285, p. 3.

OS ACONTECIMENTOS do Alto Alegre. Diário do Maranhão, São Luís, 26 abr. 1901. n. 8289, p. 2.

OS ÍNDIOS - formação de culpa. Diário do Maranhão, São Luís, 9 out. 1901. n. 8440, p. 2.

OS ÍNDIOS - prisão e morte. Diário do Maranhão, São Luís, 4 dez. 1901. n. 8487, p. 2.

OS ÍNDIOS do Monte Alegre. Diário do Maranhão, São Luís, 13 jun. 1901. n. 8340, p. 2.

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