Artigo
O primeiro amor de Maranhão Sobrinho
jornal Turma da Barra

Maranhão Sobrinho (...) aos 18 anos de idade, tivera uma namorada chamada Honorina de Miranda, a Noca, como era comumente conhecida. Moça que, a julgar pela caligrafia impecável com que assinava os documentos oficiais, possuía esmerada educação."       

*Kissyan Castro

            Entrar na intimidade de um artista sem divisá-la de sua própria arte, é como estar às apalpadelas em intrincado labirinto, sem contar com a ajuda de um fauno. Sobretudo a intimidade de poetas da esteira de um Maranhão Sobrinho. Pois, como bem nos acautela Fernando Pessoa, esses demiurgos da lira costumam celebrar, também, as suas “dores fingidas”. No entanto, valendo-me do que a despeito disso escreveu o poeta Floriano Martins, em Escritura Conquistada, de que “os poetas estamos todos em cada um de nossos versos”, além do relato de testemunhas auriculares, apoiado por documentos oficiais e do que se pode depreender do que nos deixou em prosa e verso o próprio Maranhão Sobrinho, arrisco-me a falar, ainda que minimamente, desta que talvez tenha sido o primeiro amor do nosso poeta maior. Refiro-me a Honorina Fernandes de Miranda.
            Com o passamento do pai, o Capitão Honório Fernandes de Miranda, e vendo abalada a estrutura econômica da família, Manoel Raimundo Nonato de Miranda resolve deixar Cururupu, sua gleba natal, para vir exercer o magistério na então próspera Vila de Santa Cruz da Barra do Corda. A mãe, Dona Rita Maria da Silva Miranda, recusa-se acompanhá-lo, mas recomenda-lhe a irmã, a pequena Honorina Fernandes de Miranda, que, mesmo tenra, manifestava disposição e vivacidade incomuns, podendo muito bem auxiliá-lo em suas atividades.
           
Maranhão Sobrinho fora seu mais obstinado aluno, e não escapou às suas recorrentes traquinagens, chegando a botar pimenta moída no seu “torrado”. Hábil educador, Raimundo Nonato conseguiu vislumbrar, por trás da excentricidade peráltica do pequeno Zeca, o gênio invulgar que se tornaria mais tarde.   Além da instrução basilar, Maranhão Sobrinho recebeu de seu mestre admiração e sincera amizade. Quantas vezes o poeta não deve ter-lhe visitado para tirar alguma dúvida retida durante a aula formal, ou para ouvir-lhe as exóticas histórias, folhear os livros de sua biblioteca particular, ou simplesmente – e por que não? – para contemplar a jovem Honorina, por quem cedo passou a nutrir especial afeto, e cuja formosura entusiasticamente exalta num poema publicado no jornal cordino O Porvir, em 21 de fevereiro de 1897, época em que supostamente namoravam:

 

Vês? Teus seios gentis por entre as rendas

Da perfumosa e cândida mantilha,

Cantam baladas e soletram lendas.

 

Teu rosto tem a palidez de Ofélia,

O perfume das virgens de Sevilha

E a mágica expressão do de Cordélia!
 

O saudoso escritor Antonio de Oliveira, na separata nº 82 da Revista das Academias de Letras, de 1976, foi quem primeiro trouxe à tona o assunto, ao referir-se a uma entrevista com Olímpio Fialho, amigo de infância de Maranhão Sobrinho, o qual lhe segredou que o autor de Papéis Velhos, aos 18 anos de idade, tivera uma namorada chamada Honorina de Miranda, a Noca, como era comumente conhecida. Moça que, a julgar pela caligrafia impecável com que assinava os documentos oficiais, possuía esmerada educação.
Eu mesmo não tinha sequer noção do quanto significou essa primeira experiência amorosa para o aedo barra-cordense, até encontrar, em O Guarany, outro antigo periódico cordino, como por acaso, um texto em prosa do poeta, uma crônica que denuncia um Maranhão Sobrinho romântico, a desaguar o coração sem o menor desvelo. Transcrevo aqui um trecho:

 

“Há lá para as bandas da Rua Formosa (atual Frederico Figueira), célebre, muito célebre no canhenho do humilde rabiscador modelo destas linhas, uma celestial senhorita que me cativou docemente o coração. É um mimo da natureza; é a verdadeira coroa da criação...”.


            Refere-se esta “celestial senhorita” a Honorina de Miranda? Provavelmente. Tanto que mais adiante ele indaga:

            “Conheces a minha bela?”

            Maranhão Sobrinho emitiu essa crônica ao jornal enquanto passava alguns dias com parentes, provavelmente em Carolina ou Riachão, cidades onde o clã Maranhão possuía presença expressiva. E a julgar pelo temperamento irrequieto do poeta, não é de se estranhar sua tendência andarilha de viajor. No entanto, sua aventura amorosa inaugural chegou ao fim quando numa dessas viagens teve um sonho, não um sonho qualquer, fruto do enfado e ansiedades da vida, mas um sonho premonitório, cujo relato do cumprimento Maranhão Sobrinho deixa registrado em versos, na Revista Elegante, em 23 de março de 1899:

Parti... e tu ficaste! Um só momento

Não pude me esquecer de ti, amada!

Do funda da minh’alma angustiada

Fugira todo o meu contentamento.

 

E andei... mas tendo em ti o pensamento,

Nunca olvidei-te. Em meio da jornada,

Sonhei qu’esta minh’alma apaixonada

Tinhas lançado em tredo esquecimento!

 

Voltei então... julguei achar-te a espera

Minha cantando a doce primavera

Do nosso amor, festiva, palpitante...

 

Cheguei, enfim... Ó dor! Ó sentimento!

Como sonhei – achei o esquecimento...

E sorrias nos braços d’outro amante!

 

            Quem teria sido esse “outro amante” em cujos braços o poeta flagrou sua amada Honorina? Em minhas pesquisas, acabei descobrindo que se tratava de Políbio Martins Jorge, filho do capitão Caetano Martins Jorge e Ana Martins da Cunha, influente família nesta cidade. Esse pérfido ato teria deixado profundas e indeléveis marcas em sua alma de poeta.

Este assunto seria irrelevante não fosse as implicações que viria a ter tanto na poesia de Maranhão Sobrinho, quanto, talvez, nas motivações que lhe fizeram deixar Barra do Corda. A propósito, o que teria mesmo motivado o nosso aedo a deixar sua família, amigos, seu torrão natal, para nunca mais voltar a vê-los? A versão oficial reza que Barra do Corda tornara-se pequena demais para ele, e, à maneira de Rimbaud, exaurira todas as possibilidades de aquisição do conhecimento que sua aldeia poderia oferecer. Concordo. Mas parece uma versão cômoda demais. Teria sido apenas isso? Não buscava o nosso poeta destaque, posição social? Não. Ou não teria abandonado o curso normal em São Luís só por se ter indisposto com um dos professores. Ou teria procurado amparo em outra entidade afim, o que não fez. O que o levou daqui não teria sido a ambição por “metais preciosos”? Definitivamente, não. Pois, como nos diz Antônio Lobo em Os Novos Atenienses, Maranhão Sobrinho “possuía pelas coisas materiais da vida a mais soberba das indiferenças”. Poderíamos atribuir o seu êxodo talvez a uma frustração política, por causa da prevalescência do republicanismo local? Ou mesmo por suas inclinações nomadistas, próprias do seu temperamento erradio? Vale ressaltar que em O Guarany, de 26 de fevereiro de 1899, trazia estampada na primeira página a seguinte manchete: “O Fim do Mundo em 13 de Novembro deste Ano”. Teria esta charlatanesca mensagem fustigado o nosso poeta, que para não enfrentar o Juízo Final por aqui mesmo, saíra às pressas apenas três meses antes?  Seria trágico, não fosse cômico. Por fim, não poderíamos atrelar a essas hipóteses também a sua frustração amorosa?

Creio que nos esquecemos de relacionar dois detalhes importantes: a mudança de Maranhão Sobrinho para São Luís, em 15 de agosto de 1899, com o casamento de Políbio Martins Jorge e Honorina Fernandes de Miranda, ocorrido em 27 de maio de 1899. Terá sido mera coincidência o nosso aedo ter deixado Barra do Corda, definitivamente,  a menos de três meses do casamento do seu primeiro e grande amor? Junte a isso a tendência escapista do poeta e já não teremos uma hipótese que se possa descartar.

Dizem os antigos que jamais nos esquecemos do primeiro encontro, do primeiro beijo, da primeira intimidade, enfim, do primeiro amor.  Verdade ou não, deixemos que o próprio Maranhão Sobrinho nos conte em versos a sua experiência, num dos primeiros poemas que publicou ao chegar em São Luís:

“E tu passas mimosa,

Ó casta e meiga flor da minha aldeia!

Gravando com os pezinhos cor de rosa

Estrofes raras na suave areia...”


Maranhão Sobrinho de fato não a esqueceu. Sua imagem foi sendo mistificada, e verso a verso expurgada até à sublimação arquetípica da perfeição feminina, até que enfim estivesse pronta para reencontrá-lo, não mais em carne e osso, e correr o risco de perdê-la novamente, mas no âmbito do poema, onde a aguarda em sua turris ebúrnea, “longe dos homens e das casas”, onde só há lugar para dois, onde a eternidade é descartável, e apenas “dois brancos pares de travessas asas” ruflam uníssonas na imensidão azul do sonho.

*Kissyan Castro é poeta e escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(TB27jul2015)

 

Crônica
O ato de escrever
jornal Turma da Barra

Hoje sei que para a poesia nos tocar depende não só do bom poema, 
mas também do leitor, que, através da leitura habitual de poesia, aguça sua sensibilidade
"

*Kissyan Castro

            Se me fosse dado resumir o que para mim significa o ato de escrever, no que se refere à poesia, usando uma única palavra, “aventura” seria a mais apropriada. Não no sentido lúdico de brincar com as palavras, mas no sentido de desconhecer o caminho até alcançar o objetivo. Ou seja, eu sei aonde quero chegar, mas a priori desconheço como chegar, o que encontrarei pela frente.
            No entanto, à medida que vou escrevendo, o caminho vai se aclarando, e quando me dou conta já tenho chegado, ou pelo menos creio ter chegado. Outras vezes, parte de uma ideia inicial, uma iluminação súbita a ser desenvolvida em tempo oportuno, que poderá ou não resultar num poema.
            Também, às vezes, o fim resulta outro, alheio ao inicialmente proposto. E nisto reside a maior aventura – o não estar totalmente no controle da situação. Lembremo-nos de que é a Poesia quem escreve seus poetas, e não o contrário.
            O poeta português Gonçalo Tavares disse certa vez: “para mim, escrever é pensar, se penso antes, não chego a escrever.” Esta frase dialoga com a bem conhecida tese do poeta francês Mallarmé, segundo a qual a poesia é feita com palavras, e não com ideias e sentimentos. Com isso, eles não querem dizer que escrever seja um ato irracional, despropositado ou um automatismo psíquico, segundo suas concepções.
            Na verdade, ao escrever, eles procuram ideias para suas palavras, e não palavras para suas ideias. Eles estão querendo dizer que, para eles, escrever também é uma aventura, e que a partir das suas escrituras apreendem o mundo e o questionam.
            O poeta maranhense Ferreira Gullar, por sua vez, prefere achar que Mallarmé mostra apenas um lado da questão. A poesia se faz com palavras, sim, mas para consumi-la, assim como o carvão que, para liberar sua energia, precisa ser consumido pelo fogo, ou seja, faz-se necessário destruir as palavras de seu significado de dicionário, unilateral, unívoco, e fundar outros, múltiplos significados.
            Mas como isso se dá? Quando se tem vontade? Não, necessariamente. É preciso, antes, conforme sugere mui acertadamente o autor de “A Luta Corporal”, alcançar uma temperatura em que todos os metais se fundem. Essa temperatura tal é o estado lírico, o alumbramento, o “espanto”, como o prefere, sem o qual o poema não alça voo e não ultrapassa o nível do prosaico.
            O poema é o lugar onde se dá o processo alquímico das palavras, onde tudo vira poesia, até o cascalho. É uma espécie de máquina responsável pela produção do efeito poético por meio das palavras. Se o poema se insurge e não produz o efeito poético, não sacode o leitor, nem mesmo quem o escreveu, não há poesia. Seja quem for que o tenha escrito.
            Por outro lado, não é a intensidade do estado lírico, o alumbramento, que alguns ainda insistem em chamar “inspiração”, que garantirá a excelência do poema, nem tão somente o domínio dos recursos linguísticos. Mas sim a atuação equilibrada de ambos.
            Daí a transpiração, a obrigatoriedade que nos é imposta de conhecer e dominar o instrumento de nosso trabalho. Porque não basta querer ser escritor, é preciso merecer sê-lo. Assim, quando vier a tensão do espírito, o alumbramento, suscite ao poeta a combinação de palavras em que haja sinapses, com maior carga possível de poesia.
            Contudo, nem todo grande poeta escreverá alta poesia todo tempo. Nem sempre serão eles visitados pela poesia todas às vezes que se debruçarem sobre a página em branco, que não deixa de ser um poema. Isso dependerá, entre outros fatores, do grau de maturidade geracional que enseja o poema, o tempo, as circunstâncias. O que não é sempre o mesmo em todo grande poeta. O que não prova, também, que existam lugares mais “poéticos” que outros.
            Rilke, por exemplo, afirma que não existe ambiente estéril, e sim poetas incapazes que evocar suas riquezas. Schopenhauer, por sua vez, assegura que um bom cozinheiro é capaz de dar gosto até a uma velha sola de sapato. Agora, quando nos deparamos com um Ezra Paund dizendo: “não transponha em versos medíocres o que já foi dito em boa prosa”, somos levados a pensar duas vezes.
            Hoje sei que para a poesia nos tocar depende não só do bom poema, mas também do leitor, que, através da leitura habitual de poesia, aguça sua sensibilidade.
            Quando isso acontecer, quando ele – leitor – puder desvendar insuspeitáveis elos entre as coisas que o cerca, verá que, para comover, o poema não precisa ser sempre e imediatamente compreensível. Será igualmente atingido pelo uso habilidoso da linguagem, pela insurgência de imagens inusitadas, pelo sortilégio até. Afinal, a verdadeira poesia, como nos ensinou T. S. Eliot, é capaz de comunicar antes mesmo de ser entendida.


*Kissyan Castro é poeta e escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(TB29nov2012)

 

Poesia
Rios e canos vazios
jornal Turma da Barra

barra do corda
dois rios
te percorrem

dois rios te untam
e se perguntam:
até quando?

o rio não atinge
toda a família
o rio é longe
conduzi-lo a balde é tarefa árdua:
custa suor
custa água

mas que tem a ver o rio
com a mercearia não paga?
o susto do cheque sustado?
o aluguel atrasado?
e o aviso de corte?

faturas se encontram
à luz de velas
mas não há amor

quando as torneiras
se abrem percebe-se da água
apenas a sede

a fatura chega e com ela
a fratura
a fartura não

barra do corda
cidade cercada de rios
e canos vazios

cidade cercada de trios
cercada de cios
e canos vazios

barra do corda
em teus canos vazios
a vida pelo cano

no bairro fulano
na rua de tal

e assim seguimos
nessa comunhão de sedes
nesse caminhão de enganos

cidade minha
terra de Uchoa
tróia que escoa
se água continha

cidade minha
mesopotâmia encastoada
em sólido solo sertanejo
gleba de gente tão rio

barra barra
sei o que esta cidade
insigne significa

barra barra
e esta barba
por fazer

que alguns preferem
deixar de molho
em banho-maria

muda, barra!
muda essa mania de querer
que tudo se lave sem água.


*Kissyan Castro é poeta e escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(TB1nov2012)

 

Crônica
O rebelde Rimbaud
jornal Turma da Barra

Rimbaud foi um furacão que arrasou sua época e que ainda hoje, 
quando o lemos, sentimos como que lufadas na face, 
quando não um soco no estômago, um nocaute.
"

*Kissyan Castro

            Neste sábado, 20 de outubro, completam-se 158 anos do nascimento do poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), um dos maiores fenômenos da literatura universal.
            Rimbaud foi um furacão que arrasou sua época e que ainda hoje, quando o lemos, sentimos como que lufadas na face, quando não um soco no estômago, um nocaute. Sua obra até hoje nos cativa e intriga. Sua prosa poética desafia os tradutores. Ele foi um garoto prodígio, uma traça de livros. Conta-se que em criança ele foi à Biblioteca Pública e escolheu obras de ciências avançadas e contos orientais, livros que os bibliotecários não costumavam entregar nas mãos de leitores infantis. Como lhe foram negados os livros, Rimbaud, para se vingar, escreve uma sátira – “Os Sentados” – criticando a inércia intelectual atravancada dos bibliotecários.
            Espírito inquieto e fugidio, um andarilho por excelência, chegou a ir a pé para a Itália. Ele queria fugir, sair da vida pouca de sua cidadezinha, ultrapassar a si mesmo, deixar o rebanho. Charleville era pequena demais para contê-lo. Em 1871 escreve seu grandioso poema “Le Bateau Ivre” (O Barco Ébrio) e com este debaixo do braço, segue para Paris em busca de reconhecimento. De fato, este poema foi o seu bilhete de ingresso à corte literária parisiense, onde já reinavam
Victor Hugo, Mallarmé, Baudelaire e Verlaine.
    
   
     “O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos” dizia o revolucionário poeta francês, para quem o poeta não distinguia-se do vidente. Sua passagem por nossa existência foi curta e fulgurante. Difícil chegar à modernidade sem ter passado por essa incrível figura. Rimbaud foi um divisor de águas, um continuador profundo e contumaz da poética maldita de Baudelaire. Escreveu apenas dos 15 aos 20 anos, pois, segundo ele, já havia dito tudo.

“(...)

Os pés sobre os gladíolos, ele dorme. Sorrindo
Como sorriria uma criança doente, ele faz sua sesta.
A natureza o embala com calor, ele sente frio.

Os perfumes não fazem tremer sua narina.
Ele dorme ao sol, a mão sobre o peito tranquilo,
E tem dois buracos vermelhos no lado direito.”

Este fragmento do poema “Adormecido no Vale” foi escrito quando Rimbaud tinha apenas 16 anos, inspirado na guerra franco-prussiana, ocorrida perto de Charleville, em 1870. Ao lermos revivemos a surpresa da cena. A frase cortada, o tempo curto, ofegante, é de um profundo sentimento, quase um soluço. O poeta consegue, através deste poema, estabelecer um contraste chocante entre a delicadeza da natureza e o horror da guerra. Isso sem escrever a palavra “morte”.

            Rimbaud foi utópico para sua época e profético para nós. Observa-se isso de maneira contundente na seguinte escritura: “Quando enfim for quebrada a infinita servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela, quando o homem, até aqui abominável, tiver restituído o seu papel, ela será poeta, ela também. A mulher achará o desconhecido – serão seus mundos de ideias diferentes dos nossos? –, ela descobrirá coisas estranhas, insondáveis, chocantes, deliciosas. Nós nos surpreenderemos, nós a compreenderemos”.
            Isso numa sociedade onde a mulher exercia um papel obscuro e subserviente. Por outro lado, sua pena, mordaz e lúcida, incomodou muita gente. De fato, suas críticas abalaram as supostamente sólidas estruturas sociais, sobretudo a burguesia, revelando as fragilidades nas relações humanas. Ele antecipou vários movimentos literários e culturais no mundo, como os beatiniks, os existencialistas, as literaturas de viagem; os surrealistas reivindicaram sua herança; Maranhão Sobrinho, nosso poeta maior, também bebeu dessa fonte inesgotável.
            Este infant terrible, este jovem selvagem e sem estatuto transpôs os liames provincianos e carregou o peso inexorável do espírito universal. Naquela época o Parnasianismo era a “novidade”. Rimbaud não queria a novidade, queria o “diferente”, valendo-se, para isso, do lirismo primitivo, que o reputava esquecido pelos padrões vigentes, e de uma construção verbal sofisticada, como já preconizava o autor de “As Flores do Mal”.
            Este gênio menino, este poeta a todo vapor, por suas concepções de “liberdade livre”, ofertou à humanidade uma licença para se portarem diferentemente, rompendo com a mediocridade. Rimbaud foi, sem sombra de dúvida, muito mais corajoso e questionador do que muitos jovens que conhecemos hoje em dia.


*Kissyan Castro é poeta e escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(TB19set2012)

 

Crônica
A estética do palimpsesto
jornal Turma da Barra

Não há mais vagas para se desbravar ou inaugurar.
Até sobre a lua já imprimiram pegadas e ergueram bandeiras. O acúmulo de gerações e seus legados dificulta naturalmente a originalidade, porém não incorre em impossibilidade criadora, 
demiúrgica, apenas evidencia o legítimo artista.
"

*Kissyan Castro

           Difícil dar o primeiro passo sem aquela estranha sensação de estar pisando solo alheio, já explorado e exaurido; sem dar de cara com a seguinte inscrição: “Por aqui passou a infeliz Perpetinha”.
           A geração atual não se caracteriza, como em épocas anteriores, pela inauguração estética. Isso para ficarmos apenas no restrito território da literatura. O que hoje chamam de “vanguarda” nada tem que ver com a aplicação dada ao termo em princípios do século XX. Hoje se atira para todos os lados, sem ater-se necessariamente à masmorra de uma forma fixa. Além do que, a época em que vivemos não nos permite bitolar-se sem o risco constante de sermos taxados de retrógrados enquanto ficamos boquiabertos vendo o bonde passar, isto é, o trem-bala.
           Não há mais vagas para se desbravar ou inaugurar. Até sobre a lua já imprimiram pegadas e ergueram bandeiras. O acúmulo de gerações e seus legados dificulta naturalmente a originalidade, porém não incorre em impossibilidade criadora, demiúrgica, apenas evidencia o legítimo artista. Aliás, o que verdadeiramente importa é a boa prosa e o bom poema, seja ele moderno, pós-moderno, ultramoderno, o que for, contanto que sobre o mesmo imprimamos nossa pétala de rosa ou nossa gota de bile. O caminho pode ser o mesmo, mas já são outros os pés que o trilham, como outra é a carga de experiências sobre os ombros. As idiossincrasias fazem toda a diferença quando nos arriscamos a escrever escritura sobre escritura, vez que somente o verdadeiro artista terá os recursos para, no dizer de Schopenhauer, colocar sabor até a uma velha sola de sapato.
           Por outro lado, a falta de dicção própria nos arrasta impiedosamente ao experimentalismo insosso, ou à imitação deslavada dos autores cujas obras nos identificamos, prova maior de nossa imaturidade. Tais obras existem para nos revelar dimensões e facetas da realidade que possivelmente não descobriríamos sozinhos. São suas parcelas de contribuição à humanidade. Mas, e quanto à nossa contribuição?
           Para a “solidificação” literária – faço uso aqui de uma expressão nauriana – é necessário não só a perfeita assimilação dessas obras, como também alquimicamente ajustá-las à nossa própria experiência, que por sua vez nos revelará um terceiro caminho onde nos depararemos com uma forma esquisita, porém familiar – nós mesmos. Enfim, para ser original não precisa suar a camisa, apenas regaças as mangas... quando estiverem maduras.


*Kissyan Castro é poeta e escritor, mora em Barra do Corda (MA)

(TB
20set2012)

 

Os bem vividos 400 anos de São Luís

*Kissyan Castro

           Em adolescente disseram-me que não se conhece São Luís antes de palmilhar suas praias e mergulhar em suas águas. Discordei imediatamente. Mas pra não fazer feio submeti-me ao batismo que supostamente me daria o direito de anunciar aos quatro ventos e com todas as letras que havia “conhecido” São Luís. Ledo engano. Essa ilha remota levou 400 anos para ser o que é hoje, e depois de tudo ainda me vem um Gullar dizendo que São Luís é maior do que é de fato, e que “há muitas cidades numa cidade”.
           Sim, meus caros, a velha Upaon-Açu resguarda muitos mares “nunca dantes navegados”.
           As atuais celebrações em torno de São Luís seriam pouco justificáveis não fosse seus bem vividos 400 anos. História escrita a fogo e sangue, suor e, é claro, algumas pedras de cantaria que cantam até hoje. Eu, pra ser honesto, não conheço da missa a metade. São 400 anos arrastando atrás de si uma constelação de celebridades que alcançaram notoriedade para muito além da ilha, sobretudo durante os primeiros 40 anos que se seguiram à Independência, entre os quais Odorico Mendes, Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Sousândrade, Aluísio e Artur Azevedo, e tantos outros talentos que acabou rendendo àquela afortunada ilha o pomposo título de “Atenas Brasileira”.
           Eu poderia evocar a São Luís hodierna de Josué Montello ecoando dos tambores; a São Luís de Bandeira Tribuzzi, qual “humilde presépio levantado por mãos puras”; a São Luís de Nauro Machado, tão intimamente assimilada, tão absurdamente íntima, que fê-lo expressar-se: “São Luís, cidade de pedras, cidade de pernas, cidade de fezes, cidade de verbos, e agora com teu sexo dentro da minha voz”; a São Luís suja de Ferreira Gullar, de muita dor em voz baixa; a São Luís de José Chagas, grávida de seu passado; a São Luís bibelô sobre o atlântico de Celso Borges, fada falha, ilha palha, com catirinas e bumba-meu-boi. São Luís é linda, é lenda, é maioba, é matraca, é zabumba, é reggae, é azulejo, é poesia. 400 anos que ninguém arranca das carrancas.
           Clóvis Ramos diria que tudo em São Luís vira poesia. Eu acrescentaria ainda que o que entra e sai de lá também vira poesia. Há alguns anos compus um poeminha a São Luís, quase um haikai não fosse a subjetividade, que por seu caráter fotográfico, imediatista, supunha ter feito jus à minha breve e ligeira experiência nessa cidade tão amada:


           “Frio azulejo
           na tarde azul –
           fundo desejo”

           Quando cheguei lá a primeira vez isso tudo já havia acontecido. Cheguei atrasado. Daniel de La Touche virou busto, Gonçalves Dias virou praça arborizada onde canta o sabiá, Bandeira Tribuzzi virou avenida, colégio, os demais viraram livros, lembranças. Mas ainda consegui encontrar algum espelho que me devolvesse algo desses tempos de glória. Sobraram sobrados. Miragens dos mirantes. Ladrilhos alados.
           Até hoje São Luís nunca desmereceu o título de “Atenas Brasileira”, mesmo ante a atual conjuntura literária brasileira.
           Que farei a propósito desse quarto centenário de São Luís senão orgulhar-se da minha condição de maranhense!
           Parabéns São Luís! Parabéns Sãoluísadas!

*Kissyan Castro é poeta e escritor, mora em Barra do Corda (MA)


(TB6set2012)

 

Crônica
Por um concurso literário subsidiado pela ABL
jornal Turma da Barra

Desconheço as reais condições em que a ABL se encontra,
 portanto, planejar, teorizar sem o conhecimento da realidade é atirar no escuro. Porém, tenho certeza que não se trata de algo irrealizável ou utópico.
"

*Kissyan Castro

           Há muito que fazer na Academia Barra-Cordense de Letras, como deixou claro o seu presidente, Dr. Eurico Arruda, em entrevista recentemente. Uma biblioteca com mais de seis mil títulos a catalogar e registrar, a fim de pô-la em funcionamento o mais breve possível; manter um periódico com a qualidade desta “Revista da Academia Barra-Cordense de Letras”, que não é nada fácil; além de outros projetos igualmente relevantes que requerem atenção, entre os quais a adoção de um Concurso Literário, uma medida que requer o empenho de outros setores da sociedade que queiram aderir a este projeto a favor do desenvolvimento cultural de nossa cidade.
           No entanto, para que haja de fato um Concurso Literário, que se queira permanente, que traga o selo da Academia Barra-Cordense de Letras, necessário é que esta instituição seja autossustentável, pelo menos em seus projetos culturais.
           Seus próprios membros, não necessariamente os mais abastados, mas os mais abnegados, é que precisam abraçar seriamente esta causa, para que assim não fiquemos dependendo do bel prazer de setores exógenos que não oferecem qualquer estabilidade, que dançam conforme as oscilações políticas e econômicas.
           É uma questão para os acadêmicos se reunirem – se comunicarem via e-mail ou telefone, no caso dos que não residem na cidade –, discutir o assunto e ver quanto se gastará na divulgação, premiação e publicação dos textos selecionados, ou seja, a viabilidade do projeto.
           Desconheço as reais condições em que a ABL se encontra, portanto, planejar, teorizar sem o conhecimento da realidade é atirar no escuro. Porém, tenho certeza que não se trata de algo irrealizável ou utópico. A ABL tem, sim, condições de encabeçar esse projeto autonomamente.
           Não queremos um concurso subsidiado permanentemente pelo Poder Público. É certo que o Governo deve dar condições para o florescimento da arte e que, pelo próprio exemplo da História, o crescimento da arte anda de mãos dadas com o crescimento econômico, só que, na prática, o que temos visto é que abrir espaço para o mecenato estatal significa também avalizar a sua intervenção, e isso vai contra os pressupostos da verdadeira arte que prefere andar com seus próprios pés. Não queremos, em pleno século XXI, ter de voltar a escrever literatura encomiástica.


*Kissian de Castro é escritor e poeta, mora em Barra do Corda (MA)

(TB16ago2012)

 

Crônica
Impressões em torno do aniversário da ABL
jornal Turma da Barra

o significado do aniversário da Academia Barra-cordense de Letras, 
guardiã de nossa memória literária e cultural há vinte décadas, não gastas em contemplações, mas em árduo trabalho. Talvez o resultado desse evento não seja totalmente sentido agora, porém, a longo prazo, seus efeitos serão claramente visíveis
"

*Kissyan Castro

           Sábado passado presenciamos o que talvez tenha sido o mais significativo encontro com a arte e a cultura em Barra do Corda. Essa declaração, por mais óbvia que pareça, contaminada de subjetivismo, nem assim deixa de ser menos verídica.
           Pra começo de conversa, não vi ostentação alguma. Pelo menos não aquela ostentação magnificente que causa divisões. O que vi foram pessoas comuns, como qualquer cordino que se preza, vestidos a caráter, e assim enaltecendo a Casa que os acolhia naquele momentoso evento, comemorativo de seus 20 anos de existência ativa, que, aliás, viu-se lotada, diversificada e uníssona.
           A ocasião, apesar da simplicidade, não deixou de ser solene. Solene não pela indumentária, pois não se tratava somente de privilegiar o estético; não pelas personalidades distintas que ali deram o ar de sua graça; nem mesmo pela cerimônia em si, que, verdade seja dita, valeu todo o esforço voluntário empreendido. Solene, sim, pelo conjunto da obra, porque eventos como aquele não acontecem todo dia; solene porque viabilizou o intercâmbio cultural com outras entidades que ali estavam representadas; solene, sobretudo, porque aquele acontecimento contribuiu para dar sentido e coerência a nossa história intelectual.
           Enquanto o 28 de julho se processava portas adentro da ABL, as faculdades realizavam reuniões, igrejas celebravam festas de mocidade, os passos na avenida tinham a mesma consistência, o destino era o mesmo, e mesmo assim puderam comparecer ali um número surpreendente de pessoas que manifestaram avidez por adquirirem tantos livros quanto possíveis, evidenciando que Barra do Corda tem gosto pela cultura e valoriza a arte de seu sodalício. Quando se viu em nossa cidade o lançamento de tantos livros numa só noite? O mundo anda pelo avesso e alguns ainda insistem em acreditar na salvação mediante o conhecimento.
           A Academia Barra-Cordense de Letras está de parabéns pelo nível cultural e inquestionável talento de seus acadêmicos, agora completa com seu mais novo membro recém-empossado Gael Lobão; pela abertura mais fortemente sentida a partir da divulgação das candidaturas à cadeira em vacância; por ser pauta de muitas discussões na rede social; pois boa ou má, as conversas põem em evidência as coisas, despertando críticos, defensores e curiosos.
           Assim foi, a meu ver, o significado do aniversário da Academia Barra-cordense de Letras, guardiã de nossa memória literária e cultural há vinte décadas, não gastas em contemplações, mas em árduo trabalho. Talvez o resultado desse evento não seja totalmente sentido agora, porém, a longo prazo, seus efeitos serão claramente visíveis.

*Kissian de Castro é escritor e poeta, mora em Barra do Corda (MA)

(TB2ago2012)

 

Crônica
Por um concurso literário permanente
jornal Turma da Barra

"Barra do Corda está se desenvolvendo e não só suas flores, 
mas também seus problemas necessitam encontrar expressão de qualquer forma; 
expressão essa que reflita sobre a nova realidade a qual estamos inseridos. 
Nossa sociedade precisa criar ela mesma condições para uma continuidade do processo de amadurecimento da cultura, mormente a cultura literária, que é o registro de nossa vida tornada pública"

*Kissyan Castro

           Qualquer esforço no sentido de promover a criação artística é positivo. Os concursos literários, mormente, cumprem um papel preponderante. Primeiramente, porque estimulam a criação literária, fazendo com que muitos talentos saiam da toca.
           Quantas pessoas não tomariam a iniciativa de escrever com seriedade caso se lhes mostrassem algum objetivo? Do contrário, sentem-se desmotivadas, sozinhas, como que falando com as paredes. Nenhum escritor subsiste sem um leitor. Os concursos literários possibilitam o encontro entre autor e leitor, ainda que de modo judicioso, uma vez que seu trabalho estará passando pelo crivo de uma Comissão Julgadora supostamente competente.
           Há também a competitividade, que é outro ponto positivo. Submeter-se a uma avaliação por parte de especialistas gabaritados torna-se muito proveitoso ao escritor iniciante, porque isso acaba por equiparar as coisas, diminuindo vaidades, esvaziando egos, colocando tudo no seu devido lugar.
           Ainda que os concursos literários sejam, obviamente, de natureza seletiva – portanto separatista –, possuem, por outro lado, um caráter gregário, pois aproximam pessoas que se identificam em opiniões, valores e propósitos, e isso também é muito positivo.
           E, não poderíamos esquecer, é claro, da premiação e eventual publicação em livro dos trabalhos selecionados. Não existe maior satisfação do que ver o seu poema, sua crônica, seu conto impressos num livro. É o registro permanente da sua contribuição às nossas Letras. É a coroação de um esforço, o reconhecimento máximo e a legitimação do seu talento colocado em evidência.
           Barra do Corda está se desenvolvendo e não só suas flores, mas também seus problemas necessitam encontrar expressão de qualquer forma; expressão essa que reflita sobre a nova realidade a qual estamos inseridos. Nossa sociedade precisa criar ela mesma condições para uma continuidade do processo de amadurecimento da cultura, mormente a cultura literária, que é o registro de nossa vida tornada pública.
           Essa coisa que toca por aí, contagiante, é um barato, mas custa caro. Enquanto a real preocupação é faturar, esse tipo de “cultura” vai se tornando inevitavelmente prevalecente, moldando um modo de pensar alienado, niilista. Isso porque não há muitas opções. Barra do Corda é detentora de uma tradição folclórica muito peculiar, cuja pesquisa precisa ser aprofundada. Estro das mais reveladoras expressões poéticas, Barra do Corda ainda esconde muitos versos em gavetas, e que precisam vir a lume. É ótimo ter livros, abarrotar estantes e tal, mas sem um estímulo, sem uma estratégia adequada, os livros continuarão lá, servindo de pasto à traça. É preciso não só refletir nossa realidade, como também propor e criar outras realidades não alcançadas pela traça, a partir do solo de nossas fantasias, mas que sejam possíveis.
           Sei que este assunto de concurso literário já foi pauta de muitas conversas, agora chegou a hora de torná-lo realidade. Não se trata de um concurso esporádico, como já aconteceu, mas permanente, anual, que tenha um nome, que vire tradição, que homenageie os expoentes máximos de nossas Letras. Um concurso mantido senão pela Secretaria de Cultura (mais politicamente oscilante), ao menos, e principalmente, pela Academia Barra-cordense de Letras.
           O que passa na mente de um cordino? O que pensa aquele que canta no banheiro, que vende milho assado na esquina, que ganha a vida na “rudia”, na graxa, no cabo da enxada? Quais suas aspirações e inspirações? Quão ampla é a visão que temos de nós mesmos? Como pensamos ou ajudamos a pensar a nossa existência enquanto eu ou enquanto sociedade? Um concurso literário torna-se assim o lugar onde “letrados” e “iletrados” se encontram e, de certa forma, se nivelam. É o espaço onde todos têm vez.
           O “Mecenas” que vier colocar em prática tão audacioso projeto, certamente estará contribuindo para a formação de uma sociedade mais consciente de si mesma e de seus mais altos valores, o que é conquistado, sobretudo, através de uma cultura, de uma arte e de uma literatura sólida e autônoma.


*Kissian de Castro é escritor e poeta, mora em Barra do Corda (MA)

(TB22jun2012)

 

Crônica
A coluna Prestes no Sujapé
jornal Turma da Barra

*Kissyan Castro

           A Coluna Prestes foi o mais importante dos movimentos militares ocorridos no Brasil durante a segunda década do século XX, contribuindo para a desestruturação da República Velha, que culminaria com a “Revolução de 1930”. No Maranhão, a “Marcha Invicta” viveu seus melhores momentos, pelo menos com relação à receptividade por parte das vilas e cidades por onde passou. Isto em decorrência, sobretudo, do abandono com o qual o Governo do Estado sempre tratou o sul maranhense.
           A posição geograficamente privilegiada de Barra do Corda atraía a atenção dos revolucionários que ambicionavam estabelecer nela uma base fixa a partir da qual conquistariam o Estado. Contra ela investiram, mas as forças da milícia estadual e do Exército os repeliram. No entanto, registra-se que cerca de 250 homens em todo o Estado incorporaram-se aos revoltosos, arregimentados por dois fazendeiros: Manoel Bernardino e Euclides Neiva.
           A população interiorana, composta por um grande número de analfabetos, ignorando os acontecimentos que se processavam no resto do país, acreditava ser a Coluna uma horda de desordeiros, estupradores e assassinos. Assim foi quando de sua passagem, em novembro de 1925, pelo povoado Sujapé, a doze quilômetros de Barra do Corda.
           Aquela pacata população foi alvoroçada com a notícia da proximidade dos revoltosos. Houve pânico por parte dos que ignoravam os reais interesses dos invasores. Muitos abandonaram suas lavouras, seu comércio e suas casas. Atravessaram o rio Corda levando consigo alguns pertences, os mais valiosos, os quais eram cuidadosamente escondidos ou até mesmo enterrados. Muitos se esconderam nas brenhas, em lugares quase inacessíveis, temendo por suas vidas e a de seus filhos. Assim aconteceu à dona Maria Luiza Pinto, no curso do nono mês de gestação.
           Ao tomar conhecimento da chegada iminente daqueles homens barbudos, montados a cavalos, armados e carentes de banho e roupa limpa, dona Maria Luiza Pinto sentiu as primeiras contrações. Com medo de que os insurretos pudessem ameaçar a sua segurança e a do bebê, embrenhou-se mata adentro. Lá mesmo, sob as mais duras condições, deu à luz o pequeno Raimundo que, por conta do ocorrido, é chamado até hoje de Raimundo “Capoeira”.
           Alguns jovens “sujapeenses” aderiram à Coluna, entre os quais Deoclides e Cristino, filhos de Manoel Gomes da Silva. Conta-se que Cristino fora perseguido inúmeras vezes pelas forças Legalistas, sendo enfim preso nas proximidades de Pedreiras. Levaram-no acorrentado numa embarcação através do rio Mearim, com destino a São Luís. No entanto, o revoltoso Cristino, de alguma maneira, conseguiu desvencilhar-se dos grilhões e submergir nas águas que, por serem turvas, dificultaram a mira dos fuzis. Dispararam inúmeros tiros no intuito de atingi-lo e levá-lo ainda que morto. Nenhuma mancha de sangue e nenhum corpo, porém, viu-se boiar à superfície do Mearim.
           Contudo, numa outra ocasião, Cristino não teve a mesma sorte e foi pego. Silvino Gomes, primo do aludido revoltoso, contava que, enquanto recolhiam-no à cela onde permaneceria por tempo indeterminado, passava uma freira, já encurvada pelos anos, que viera talvez interceder em favor de alguma alma arrependida. Cristino, reconhecendo aquela religiosa, confidenciou ao carcereiro: - “Aquela freira foi minha professora em Barra do Corda”.
           Este, intrigado, foi procurar saber à freira se o referido era ou não verdade. A madre então interpelou o guarda do cárcere sobre o nome do presidiário, o qual, ignorando-o, dirigiu-se outra vez à cela. – “Diga a ela que sou o Cristino Gomes da Silva”. Ela então lembrou-se de quem se tratava. Como poderia esquecer-se daquele que há alguns anos fora seu mais aplicado aluno? Uma rara inteligência saída das brenhas do sertão e que agora encontrava-se retida atrás de grades frias e paredes implacáveis. Sensibilizada, a freira brigou na Justiça até conseguir a soltura do revoltoso Cristino. Depois disso nunca mais se ouviu falar em seu nome. Deoclides, seu irmão, foi fuzilado na Bolivia, por ocasião da dissolução da Coluna.


*Kissian de Castro é escritor e poeta, mora em Barra do Corda (MA)

(TB29mar2012)